Dezembro de 2010
“Não é
sempre que se pode ter o direito de tomar a palavra: há de haver uma qualidade
ou categoria que possibilite esse uso”. (De Gimeno, A Nova Retórica, 1986).
Traduzindo melhor: não é
qualquer pessoa que pode falar num momento especial, não é qualquer pessoa que
pode ter o direito de comunicar algo num momento sublime, este direito de
“falar”, ou melhor, de “comunicar algo importante” não é para qualquer pessoa.
Este direito só é dado a pessoas muito especiais, que têm alguma “qualidade”,
alguma coisa importante, algum acontecimento que lhe deu o direito comunicar
algo, como estou fazendo aqui, agora.
Fico imaginando: por que
eu tenho o direito de tomar a palavra, de comunicar algo, de estar aqui diante
de vocês para proferir um discurso como paraninfa desta primeira turma do curso
Letras/Libras?
Será que é por que eu
fui a primeira coordenadora deste curso? Acho que não, porque isto qualquer
pessoa poderia ser... Penso que ganhei este direito de estar aqui na frente,
hoje, porque eu entendi algumas coisas e consegui provar para vocês, formandos,
que entendi e me comprometi com coisas importantes.
Convivendo com os
surdos, e estudando a educação de surdos, eu entendi que:
a)
Os surdos
são pessoas iguais a quaisquer outras, são pessoas normais, com os mesmos
problemas, dificuldades, projetos, esperanças, sonhos....
b)
Os surdos
são pessoas inteligentes e criativas que lutam para vencer obstáculos da
comunicação e que, para isto, criaram uma língua plena, interessante, bonita...
com a qual podem expressar todo o seu mundo interior e com a qual podem fazer
uso da capacidade humana de comunicar-se inteligivelmente e trocar experiências
com o outro humano.
c)
Entendi que
a língua de sinais é a língua natural dos surdos, é o artefato mais importante
de sua cultura.
d)
Entendi que os surdos são pessoas que apreendem auditivamente o mundo
por meio de uma leitura visual do mundo.
e) Entendi a importância de uma abordagem
educacional que considera a identidade, a língua e a cultura surdas como eixo
fundamental.
f) Entendi que os surdos foram “silenciados” por tanto
tempo, sofreram até mesmo violência institucional contra sua língua e cultura.
g) Entendi que os surdos formam um grupo linguístico e cultural
minoritário, socialmente excluído que não tem espaço garantido para que seu
discurso seja conhecido, divulgado amplamente.
Talvez pelo que entendi tenho o direito de estar aqui, mas, assim, não
sou apenas eu que poderia estar proferindo este discurso, mas tantos outros
ouvintes: amigos, professores, pesquisadores, intelectuais ou técnicos, que,
como eu, entenderam que cabe a nós, profissionais da educação, contribuírem
para que existam mais e mais momentos de discussão, onde as visões dos surdos,
seus argumentos, suas razões, tenham mais e mais peso e poder.
Esta turma do pólo UFBA é uma turma diferenciada, pois, dos
nove pólos que foram criados em 2006, foi a única turma, de todo o Brasil, em
que havia mais ouvintes que surdos. Foi difícil para nós, ouvintes, no início,
entendermos certas coisas que hoje entendemos. Por exemplo, houve um momento em
que os surdos reclamaram que nós, ouvintes, usávamos tanto a nossa língua oral
na sala de vídeo-aula e no laboratório, que até parecia que aquele não era um
curso de LIBRAS. Muitos de nós, ouvintes, reclamamos e dissemos que, o mesmo
direito que os alunos surdos tinham de usar a LIBRAS, nós, ouvintes, tínhamos
de oralizar. Mas, a Língua de Sinais saiu vencedora, pois só depois aprendemos
que estávamos perdendo uma grande oportunidade de transformar o espaço dos
encontros dos alunos em um rico ambiente lingüístico cuja existência só
beneficiaria aos ouvintes. Aprendemos, portanto, com a convivência, com o
respeito ao outro.
É
por isto que a professora Rosa Silveira (no livro Caminhos Investigativos) diz
que “as palavras que nós usamos estão sempre marcadas pelo OUTRO” (1996). É
verdade... Nós, ouvintes, que convivemos com os surdos na busca pelo
conhecimento sobre as Letras e sobre os sinais, fomos marcados uns pelos
outros.
A Universidade Federal
de Santa Catarina fez história no Brasil, ao acreditar numa equipe de
profissionais que se atiraram a fazer o inusitado: criar um curso completamente
novo, que não tinha de onde copiar... Um curso que estudaria e língua e a
cultura dos outros – estes outros (surdos) outrora ausentes da academia. Não
havia no Brasil um curso de graduação que se detivesse a estudar a Língua de
Sinais, nem havia tampouco surdos doutores nem mestres. Mas, esta já não é mais
a realidade brasileira. Já vários cursos de graduação e de pós-graduação se
debruçam sobre a LIBRAS e já diversos outros surdos estão contribuindo como
profissionais em Universidades brasileiras. Tudo isto se tornou realidade
porque o Brasil começou a conhecer os surdos e a entender melhor que existem as
línguas de sinais e as culturas surdas.
Como sabemos, a
linguagem humana abre possibilidades para a criação e a transformação da
cultura, portanto, a cultura surda, outrora desconhecida, hoje está conseguindo
ser divulgada, ampliada e respeitada.
Continuamos num
movimento de luta a favor do uso irrestrito da Língua de Sinais, e aqui se
formam hoje PROFESSORES, surdos e ouvintes, de LIBRAS.
Professores de Libras
têm mais que a missão de ensinar Libras – têm a missão de ensinar a ensinar surdos,
a missão de ensinar professores e estudantes, surdos ou ouvintes, a ensinarem
surdos verdadeiramente, não como quem faz o pacto da mediocridade: eu finjo que
ensino e você finge que aprende – pois foi isto que aconteceu por tanto tempo
no Brasil.
Vocês estão agora
legitimados socialmente como PROFESSORES DE LIBRAS. Professores de Libras
surdos e professores de Libras ouvintes. Certamente os professores de Libras
surdos terão uma experiência e os Professores de Libras ouvintes terão outra.
Uma vez agora
PROFESSORES DE LIBRAS, penso que vocês precisarão construir uma história,
construir a educação de surdos no Brasil e construir sentidos para a disciplina
LIBRAS que está nos currículos mas que ainda não está suficientemente definida
em seus objetivos pedagógicos. Visitem o futuro nos seus sonhos e decidam viver
lá...
Assim, penso que mais
que ter o DIREITO de tomar a palavra, tenho o PRAZER, a ALEGRIA de tomar a
palavra, de falar algo para vocês
Quero dizer-lhes que não
desistam, continuem a estudar, a pesquisar sobre este interessante povo surdo.
Ouvintes: Continuem a
ser parceiros nesta luta para que os surdos tenham seu lugar neste mundo do
trabalho.
Surdos: Continuem a nos
ensinar sobre vocês, sua língua e sua cultura.
E que Deus os abençoe a
todos, pois eu sei que Deus gosta dos surdos, pois, afinal, ele os fez como
vocês são: perfeitos surdos!
Profa. Dra. Nídia Limeira de Sá