sábado, 17 de dezembro de 2011

OS SURDOS, A MÚSICA E A EDUCAÇÃO


Este texto encontra-se publicado na revista eletrônica Dialógica, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas. Vol. 1 N. 6. ISSN 1809-9041. http://dialogica.ufam.edu.br/expediente.htm


Profa. Dra. Nídia Limeira de Sá

Este texto procura mostrar a importância de se considerar o olhar do próprio surdo no ensino de música para surdos. Alerta a que muitas abordagens na Educação Musical desconsideram as marcas culturais surdas, dão a impressão de que se está forçando o surdo a participar de algo que não leva em conta suas características biológicas, que atenta contra sua identidade, que não considera a cultura surda. Defende que o objetivo de ajudar o surdo a conhecer a importância da música há que demandar um trabalho diferente daquele que se realiza com os ouvintes. Defende ainda que os surdos têm o direito de passar por experiências educacionais em grupos de surdos, constituindo estratégias de identificação num processo sócio-histórico autêntico, não comandado. Conclui que “conhecer música” é um direito que os surdos têm, mas que compete aos profissionais da área convencê-los, encantá-los, atraí-los para a importância deste artefato cultural das comunidades ouvintes.





BA-BOO-MA-RANG-RANG-RANG. BA-BOO-MA-RANG-RANG-RANG. É com uma tabuleta com estes dizeres que o professor John Leeds (William Hurt) começa a tentar ensinar música para sua aluna surda no filme Filhos do Silêncio, baseado na peça de Mark Medoff, que conta a história de amor de Leeds, um professor de surdos, e a surda Sarah (Marlee Maltin, que, por sinal, ganhou o Oscar de Melhor Atriz por este trabalho). Leeds consegue um bom resultado, porque sai do mero “ensino de música” e mistura música com dança e com percepção das vibrações. É emocionante a tentativa que ele faz ao tentar explicar, por gestos, o que é a música, para sua amada, que nunca ouviu.
          Outros tipos de vivências com música para surdos são apresentados no filme “Adorável Professor” (Mr. Hollan´s Opus - 1995), quando, o professor Glen Holland (Richard Deyfruss – também indicado para o Oscar de Melhor Ator neste trabalho) tenta fazer o seu filho surdo vivenciar a música sentando em cima de uma caixa de som ou quando ele tenta cantar a música "Beautiful Boy", de John Lennon, na formatura de seu filho, numa escola de surdos, colocando recursos tecnológicos de jogos de luzes para acompanhar a orquestra. Esta música escolhida, quando diz "life is what happens while you’re busy making other plans", ou seja, “a vida é o que acontece quando você está ocupado fazendo outros planos”, serve para ilustrar a disparidade de sentimentos envolvidos entre o sonho de ser um famoso músico e a realidade de haver sido um “simples” professor de música e pai de um filho surdo.
          Tenho assistido muitas manifestações de insatisfação por parte de surdos adultos que, ao analisarem a maneira como a inclusão da música é feita na Educação de Surdos, sentem-se agredidos pelo fato de que muitas abordagens dão a impressão de que se está forçando o surdo a participar de algo que desconsideram as marcas culturais surdas, dão a impressão de que se está forçando o surdo a participar de algo que não leva em conta suas características biológicas, que atenta contra sua identidade, que não considera a cultura surda e que é uma imposição dos ouvintes. Estamos tratando de um território contestado, logo, é necessário que alguns pressupostos sejam definidos, para que se possa pensar em conseguir sucesso na relação do surdo com a música, ou no objetivo pedagógico de utilizar a Educação Musical para auxiliar o surdo a desenvolver-se como pessoa que reflete sobre todo o seu contexto social.
          É muito importante que sejam questionados os objetivos pedagógicos a serem perseguidos com as atividades musicais para surdos: o que se pretende é oferecer aos surdos o direito de conhecer este elemento cultural humano tão importante, ou, o que se pretende é obrigar os surdos a participarem de algo que não faz sentido para eles? Estamos tratando de uma oferta ou de uma obrigatoriedade? De uma troca ou de um pacote depositado?
          Entendo que os surdos podem ter acesso à música: de sua forma, de seu jeito próprio. Segundo Helena Coelho,

“o canto é uma forma de comunicação pelo toque. A energia enviada pelo cantor por intermédio das vibrações sonoras de sua voz “toca” de forma fisicamente mecânica o tímpano do ouvinte. Mas não só o tímpano. Todo o corpo do cantor é uma fonte sonora esférica e todo o corpo do ouvinte é um receptor sonoro imerso no campo dessas vibrações. Assim sendo, falar/cantar e escutar é uma espécie de ‘toque absoluto’” (Coelho, 1991).

Olhando por este ângulo, é possível dizer que os surdos podem curtir este “toque” proporcionado pela música. A experiência da surdez potencializa não apenas a visão, mas todo o corpo do surdo, levando-o a experimentar as vibrações de forma até mais intensa que os ouvintes.
           Os surdos têm opiniões sobre a música e suas expressões. Noutro trabalho, entrevistei um surdo que disse:

“Surdo nenhum ouve música ou gosta de corais... No coral de surdos tem que prevalecer a expressividade do surdo na arte, não se trata de acompanhar o som. Toda a cadência, toda a sequência não tem que ser conforme o som” (Sá, 2002, p. 169).

          Ora, os surdos não estão alheios às expressões culturais características dos ouvintes: sabem que elas existem e emitem opiniões sobre as mesmas. As dissonâncias que surgem quando comunidades ouvintes e surdas se encontram é que, muitas vezes, os ouvintes pensam que os surdos “devem” apreciar a música como eles apreciam e os surdos pensam que os ouvintes estão encontrando mais uma forma de ressaltar sua “falta” ou de fazer com que os surdos sejam como eles (como se os ouvintes fossem o padrão).
          É necessário, então, entender que ser surdo é muito mais que não ouvir, que não falar, que não cantar, que não tocar instrumento: esta perspectiva da “negatividade” embaça a perspectiva da potencialidade. Ser surdo é experimentar uma forma diferenciada de ser, a qual se baseia primordialmente nas experiências visuais para a leitura do mundo. Em verdade, surdez é muito mais que privação sensorial, muito mais que a experiência de uma falta.
          Os surdos não têm como única característica a surdez, por isto não podemos falar dos surdos como uma totalidade, entretanto, podemos falar deles como um grupo sócio-cultural, comunitário e plural. Logo, não podemos falar em Educação Musical para surdos pensando num surdo idealizado, pois os surdos diferem muito entre si e os diferentes graus de surdez, aliados às diferentes experiências familiares, sociais e culturais, certamente diferenciarão os graus de interesse pela música, ou pela Educação Musical, ou pelos instrumentos musicais.
          Há surdos que odeiam música, mas há surdos que amam a música. Há surdos que entendem a música, há surdos que nem querem entender a música. Há surdos que se emocionam com a música, há surdos que se sentem indiferentes com a música. Há surdos que têm maiores condições de deliciar-se com a música. Há surdos que jamais passarão por uma experiência de sentir prazer na presença de alguma peça musical. Tudo isto porque existem diferentes graus de surdez e diferentes experiências sociais com a música: isto faz uma enorme diferença quanto aos objetivos educacionais.
          No entanto, independentemente das diferenças que existem entre os surdos, a surdez impõe-se como uma característica que ultrapassa as determinações de classe, de gênero, de raça, fazendo com que se possa falar dos surdos como um grupo que compartilha modos de existir e que, por causa desta característica ressaltante, tendem a formar comunidades que compartilham experiências, interpretações, significados e representações. Isto faz com que seja possível dizer que os surdos, de modo geral, não têm muito interesse pela música, sabendo-se que esta afirmação não envolve todos os surdos. Da mesma forma, se pode afirmar que os surdos, de modo geral, têm muito interesse pela dança, sabendo-se, também, que esta afirmação não envolve todos os surdos.
           A possibilidade de se pensar no “grupo dos surdos” leva-nos a verificar que “os surdos” têm que ser chamados a opinarem sobre o tema, pois, muita contribuição se pode extrair das visões deles próprios sobre a Educação Musical. Deve-se, por exemplo, perguntar: qual a visão dos surdos em geral, sobre a obediência aos comandos dos ouvintes nas apresentações musicais de grupos de surdos que meramente copiam o ouvinte-modelo que se põe a fazer sinais, acompanhando a música que os ouvintes estão apreciando, e, muitas vezes, tendo que repetir refrões diversas vezes? Quem são os surdos que se propõem a seguir estas sugestões dos ouvintes? Ora, as imposições educacionais, políticas e clínico-patológicas sobre os surdos os fazem distanciar-se daquilo que caracteriza as comunidades surdas politicamente organizadas (em verdade, poucos sabem o que caracteriza as marcas culturais surdas de existir e de conviver).

Questionando as estratégias

          Existem surdos e surdos, mas, algumas características são comuns à maioria dos surdos: utilizam prioritariamente a visão para captar as informações do meio; têm a potencialidade natural para usar uma língua gesto-visual; estão constituindo sua história na luta contra a opressão e a discriminação, dentre outras características.
          Estas características reafirmam a necessidade de estratégias educacionais completamente diferentes das que são utilizadas para os ouvintes, não só na Educação Musical, mas em todas as propostas educacionais. Ajudar o surdo a apreciar a música e a conhecer a importância da música nas sociedades humanas há que demandar um trabalho completamente diferente daquele que se realiza com os ouvintes. Os objetivos e as estratégias pedagógicas serão outros, pois o público é diferenciado.
          Geralmente o corriqueiro é se ver surdos incluídos em classes regulares, sendo convidados a participar de aulas/atividades musicais junto aos demais alunos ouvintes, conduzidos por professores ouvintes. Nestas atividades se trabalha o ritmo, mas também a melodia, o timbre, a harmonia, é claro. Ora, o surdo não tem acesso natural a estas dimensões da música, então, as estratégias para que eles venham a entender a música devem ser muito bem planejadas.
          Uma questão importante é: acaso se pode resolver as questões que envolvem uma aula de Educação Musical para surdos apenas com a presença de intérpretes de Língua de Sinais (LIBRAS) nas salas de aula? Certamente que não.
          O uso da Língua de Sinais em sala de aula é algo conquistado recentemente no Brasil. A despeito da luta pelo direito de ter um intérprete em sala de aula, deve-se saber que a presença de um intérprete de LIBRAS não resolve todas as questões que envolvem a educação deste grupo diferenciado cultural e lingüisticamente. As atividades de Educação Musical são um exemplo de que a presença de intérprete não é a única providência a ser tomada para que se alcance o êxito escolar e o desenvolvimento de todas as potencialidades do aluno surdo.
          Em verdade, infelizmente, há ainda uma grande resistência em se usar educacionalmente a língua natural dos surdos. Assim, é imprescindível que inicialmente se questione se as propostas de Educação Musical para os surdos têm garantida a presença da Língua de Sinais Brasileira ou se, além da dificuldade de acessar os conhecimentos musicais o surdo ainda tem que vencer a dificuldade de acesso à língua do professor ouvinte. A discussão passa pelo questionamento do uso de uma língua anti-natural quando há uma língua natural disponível.
           No entanto, é necessário ampliar a discussão lingüística, pois ela sozinha não dá conta da complexidade da questão. Outras questões surgem: com tais atividades se está pretendo oferecer aos surdos um conhecimento a mais ou se está impondo modelos ouvintes? O surdo “normalizado” é o surdo que canta, é o surdo que toca, é o surdo que fala? As propostas de Educação Musical acaso estão baseadas numa visão quase que “terapêutica”, segundo a qual a música poderia funcionar como uma terapia para pessoas deficientes, patológicas?
          Quem é o professor de Educação Musical para surdos? É o professor ouvinte monolíngüe que tem como objetivo transformar o surdo em um “ouvinte de segunda categoria”? Ou é um professor que está prevenido contra a supremacia da língua oficial na escola, que conhece adequadas estratégias de ensino-aprendizagem, que enfatiza as potencialidades dos surdos, que tem qualificação técnica para este trabalho específico? A área da Educação Musical é pontual para se discutir estas questões.
          Por que querem que o surdo aprenda música? Por que a Educação Musical faz parte de um currículo para surdos?
          Se as razões para este aprendizado não ficarem muito claras para os professores, para os pais, e, principalmente, para os surdos, continuaremos assistindo a uma resistência dos surdos para com tudo o que diz respeito à música, o que poderá ser uma pena, pois o conhecimento musical pode ser utilizado em prol do desenvolvimento dos surdos em inúmeras áreas.

Apontando a necessidade de mudanças

          O que se tem a fazer é discutir as assimetrias de poderes e saberes (entre surdos e ouvintes, entre surdos e surdos, entre ouvintes e ouvintes, entre grupos e grupos, entre grupos e indivíduos) e discutir os efeitos sociais das representações, imposições e expectativas que os professores, os pais e a sociedade têm sobre os surdos e os efeitos individuais das imposições que lhes fazem. Estamos falando de surdos aceitáveis para a sociedade dos que ouvem?
          Estamos vivendo um tempo em que, infelizmente, é quase um paradigma a idéia de que os surdos têm que ser incluídos em escolas regulares (a despeito da resistência que esta idéia traz em alguns fóruns de discussão acadêmica e política). Ora, por que não podemos pensar numa proposta para a Educação Musical de surdos feita em espaços exclusivos, ou seja, tendo como alvo apenas os surdos – seja na escola, seja na associação, seja em cursos, seja em oficinas? O que nos impede de pensar em estratégias exclusivas para eles, estratégias que atendam às suas necessidades de um trabalho eminentemente visual?
           Na minha opinião, o tema da inclusão escolar deve continuar debaixo de suspeitas, à luz dos recursos lingüísticos, cognitivos, e sócio-culturais de que o surdo necessita em seu período de escolarização. Penso que questionar a inclusão nas aulas de Educação Musical é necessário, para que seja pensada e viabilizada uma proposta de Educação Musical pautada em processos de aprendizagem significativos, prazerosos e eficazes para este grupo específico, e não para que consiga performances de canto ou de execução de instrumentos musicais, como que para atestar o “heroísmo” de quem “venceu a deficiência” após um treinamento exaustivo.
          No meu entender, as propostas de trabalho educacional específico para surdos facilitam a formação da identidade surda e o aprimoramento cognitivo. Todo espaço onde suas características distintas possam ser consideradas são espaços de vida cultural. Ora, os surdos têm o direito de passar por experiências educacionais em grupos de surdos, caso assim o desejem, constituindo estratégias de identificação num processo sócio-histórico autêntico, livre, particular, não comandado; isto é plenamente possível (talvez não unicamente, mas primordialmente) em espaços que respeitem sua condição sócio-lingüística e cultural.
            Na realidade, a questão central não é “em que espaço os surdos estão sendo educados”, mas, quais são as reais oportunidades de aprendizado e quais as políticas de significação e as oportunidades de participação que lhes estão disponíveis.
          Defendo espaços privilegiados pelo uso prioritário da Língua de Sinais na educação de surdos, sim, mas não nego que, se a discussão se detiver apenas na luta pelo uso da Língua de Sinais, outros determinantes fundamentais serão apagados. Certamente o uso da Língua de Sinais é um determinante fundamental, mas não é o único. O que proponho não diz respeito a um enfrentamento entre “língua oral X língua de sinais”, ou a uma polarização “cultura ouvinte X cultura surda”, o que busco diz respeito à discussão sobre as assimetrias do poder e do saber entre surdos e ouvintes (SÁ, 2002).
          O cuidado que se tem que tomar é que facilmente o ensino da música pode se tornar uma marca do ouvintismo – imposições colonialistas dos ouvintes sobre os surdos.
          O texto de Sérgio Lulkin retrata e comenta a “expressão cultural amordaçada” no caso dos surdos:

“O coral com surdos faz uma ponte entre a produção sonora – o canto, a música, o som – e uma produção visual. A música e a letra passam pela apreciação e seleção de um professor ouvinte que faz uma tradução para a língua de sinais. (...). Os sinais são conduzidos por um maestro que ouve a canção, assim como o público ouvinte, e vai regendo de acordo com a fonte sonora. (...) Invariavelmente temos um professor (maestro) de costas para o público, sinalizando para os alunos que seguem, automaticamente, seus movimentos. O maestro sinaliza canções que jamais fazem parte do repertório lingüístico dos “cantores”. Nem mesmo são memorizadas. (...) Se considerarmos as propostas pedagógicas contemporâneas que defendem uma educação direcionada para a autonomia do sujeito, para o uso da língua como construtora de um locus cultural, então os procedimentos apresentados costumeiramente nas performances artísticas negam, com evidência, os princípios que norteiam estas propostas.

Existem apresentações de corais (de pessoas surdas) que incorporam aspectos do som como a pulsação, o ritmo, o movimento, a harmonia, e transformam o sinal lingüístico, encontrando neles a metáfora, guardando parte do sentido original e criando novos sentidos através dos códigos que se estabelecem nos espetáculos. E passam a ser de uma percepção pública, compartilhada; passam a constituir uma memória cultural.

Logo, poderíamos advogar pelo sentido cultural da escuta onde há o aprendizado da língua de sinais e a disposição para leitura e produção das linguagens do corpo (...) para o conhecimento que possa ser produzido centralmente pelo paradigma da visão e a sua relação com uma observação crítica permanente, chegando a uma denúncia da violência implícita dos processos educativos para pessoas surdas, centrados no domínio da fala e da audição (Lulkin, 1998, p. 48).

          Daí se depreende a facilidade com que as marcas culturais da surdez são mais facilmente negadas que possibilitadas.
          Não é demais ressaltar o óbvio: os surdos não ouvem, logo, não experimentam a música da mesma maneira que os ouvintes, tal como os ouvintes não têm uma percepção visual como a têm os surdos. Sendo isto uma realidade, há que se pensar: que especificidades deveriam ser respeitadas nas atividades de ensino da cultura musical para surdos? Que argumentos justificariam fazer um trabalho de Educação Musical tendo, juntos, surdos e ouvintes? Que cuidados deveriam ser tomados?
          Por exemplo: quando os surdos estão juntos, em eventos da comunidade surda, a maioria deles não valoriza as apresentações de surdos que tocam instrumentos (alguns deles até consideram deselegante um surdo querer se apresentar tocando instrumento quando sabe que a maioria dos surdos não tem capacidade de apreciar o que está sendo executado).  É óbvio que eles mesmos precisam aprender a respeitar as opções dos surdos que optam por aprender a tocar, e, eles têm que ter a clareza de que alguns surdos, pelas características de sua surdez, conseguem apreciar a música mais que outros! Ainda que não se trate de proibição, o aprendizado de instrumentos não deve ser ressaltado para os surdos em geral, visto que a ausência do sentido da audição torna esta atividade mecânica e muitas vezes sem sentido, demandando um extenso treinamento para a obtenção de resultados ínfimos.
          Não estou querendo dizer que para entender a música é necessário ser ouvinte, e nem que a música é um fenômeno que só pode ser experimentado pela audição, ou que a música não lhes pertence, ou que não possam tocar instrumentos. Em verdade, diversos surdos têm manifestações não apenas rítmicas, mas até melódico-vocais, sim. Há surdos, mesmo com surdez profunda ou severa, que chegam a “cantar” as músicas das quais decoraram a letra, principalmente quando estão sozinhos ou quando estão num grupo que está cantando aquela melodia conhecida. Há surdos que criam frases melódicas e se divertem com isto. Cantar, tocar, conhecer e entender a música é um direito que os surdos têm, caso assim o queiram.
          A música é uma forma de arte importantíssima dado o que representa para a história da humanidade. Os surdos precisam compreender que ela sempre foi, e ainda é, usada nas reuniões sociais, nos esportes, nas guerras, na busca espiritual, no lazer, na manifestação de sentimentos, enfim, que sempre foi um poderoso instrumento de comunicação. Se o surdo não receber nenhuma informação sobre a música, perderá uma gama muito importante de informações sobre a sociedade, ou seja, deixará de exercer o direito ao saber e perderá uma valiosa parte da cultura da humanidade, mas, este fato não justifica que os ouvintes exerçam poder sobre as suas vontades, constrangendo-os (Haguiara-Cervelline, 2003).
          Nem todos os surdos podem usar resíduos auditivos para apreciar a música, mas todos podem usar sua inteligência para compreender a música. As pessoas surdas podem perceber o ritmo, a dinâmica da música, o timbre do cantor, as vibrações, mas tudo isto tem que ser apresentado num contexto significativo, não num contexto mecânico, dificultoso, obrigatório.
          Muito pode ser feito pela junção de música e dança, de música e teatro. A música pode ser muito útil nas manifestações culturais dos surdos, como o teatro, a mímica, o humor (a maioria destas manifestações são também pensadas para os ouvintes apreciarem, o que é natural, visto que vivemos numa sociedade de diferentes). Os surdos devem entender que a música provoca (mais) emoções nos ouvintes, e estas emoções podem ser entendidas pelos surdos.
          No entanto, se se vai usar a música como apoio para o alcance de outros objetivos, como a melhora da fala, que isto seja dito ao surdo, para que ele não fique com a impressão de que “aquilo” é tudo o que ele pode vivenciar sobre música. A utilização mecânica da música em sessões de “terapias”, as meras apresentações artísticas com instrumentos, minimizam as possibilidades de desenvolver o interesse pela música. O princípio subjacente é: conhecer música é um direito que os surdos têm, mas compete aos profissionais da área atraí-los, convencê-los, sensibilizá-los, encantá-los. Não se dá assim com toda a Educação?

 REFERÊNCIAS

Coelho, Helena de S.N.W.: Técnica Vocal para Coros. São Leopoldo, Sinodal, 1991.
Haguiara-Cervelline, Nadir. A musicalidade do surdo: representação e estigma. São Paulo: Editora Plexus, 2003.
Lulkin, Sérgio. O discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle do corpo e a expressão cultural amordaçada. In: SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998.
Sá, Nídia Regina. Cultura, poder e educação de surdos. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2002.
Sá, Nídia Regina. Cultura, poder e educação de surdos. São Paulo: Edições Paulinas, 2007.