sábado, 17 de dezembro de 2011

PARA ALÉM DA TRADUÇÃO: o caso dos intérpretes de LIBRAS

Profa. Dra. Nídia Limeira de Sá

Um profissional muitíssimo requisitado atualmente é o tradutor/intérprete de Língua de Sinais. Nas experiências educacionais regulares, em que são incluídas crianças surdas, torna-se imprescindível a presença dos chamados “intérpretes educacionais”, pois sua atuação sinaliza respeito para com a condição lingüística específica do surdo.




O Brasil, por meio da Lei 10.436/2002, tornou oficial a Língua de Sinais Brasileira, reconhecendo-a como meio legal de comunicação e expressão. De acordo com a Lei, a Língua Brasileira de Sinais é o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria e oriunda de comunidades de pessoas surdas do Brasil, e, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais devem ser garantidas por parte do poder público em geral. Na verdade, a Lei de LIBRAS e a Lei da Acessibilidade (Lei 10.098/2000), sugerem a importância do intérprete, mas não prevêem explicitamente sua presença, nem exigem qualquer formação ou qualificação específica.
Segundo a lingüista Lucinda Brito (1993), "esta língua que os surdos criaram espontaneamente tem estrutura altamente sofisticada, apesar de não recorrer a sons, mas sim às mãos, à expressão facial, ao corpo, ao espaço e ao movimento. É dotada de dupla articulação (unidades distintas e significativas) e possui sintaxe e morfologia tão elaboradas quanto o Português, o Russo, ou qualquer outra língua oral. (...) Sua gramática apresenta especificidades em todos os níveis: fonológico, sintático, semântico e pragmático.(...). A lingüística da Língua de Sinais já é uma disciplina da lingüística geral com objeto de estudo e métodos próprios”.
Atualmente os surdos estão tentando reconstituir a experiência da surdez como um traço cultural, tendo a Língua de Sinais como elemento significante para esta definição, e a sociedade é chamada a encarar o surdo como autor e ator de uma cultura minoritária, como usuário de uma língua natural, como membro de grupo que demanda uma educação bilíngüe e multicultural, como uma pessoa diferente e de identidade legítima. Esta educação bilíngüe-multicultural não envolve só considerar a necessidade do uso de duas línguas, mas também significa, além de dar espaço privilegiado e prioritário à língua natural dos surdos, ter como eixo fundamental a identidade e a cultura. No respeito a esta condição, a atuação do profissional tradutor/intérprete é importantíssima. Até mesmo a Assembléia Geral da ONU (em dezembro de 1987) aceitou a recomendação de seus especialistas que, reunidos num Encontro Global, declararam: “os surdos (...) devem ser reconhecidos como uma minoria lingüística, com o direito específico de ter suas línguas de sinais nativas aceitas como sua primeira língua oficial e como o meio de comunicação e instrução, tendo serviços de intérpretes para suas línguas de sinais”. (Relatório Final do Encontro de Especialistas para Rever a Implementação do Programa Mundial de Ação em Relação aos Deficientes – Estocolmo – 17 a 22/8/87, citado por Wrigley,1996, p. xiii).
Quando se insere um intérprete de Língua de Sinais na sala de aula abre-se a possibilidade do aluno surdo receber a informação escolar em sua própria língua materna. Ao mesmo tempo, o professor ouvinte pode ministrar suas aulas sem preocupar-se em como passar a informação em Língua de Sinais, atuando em sua língua de domínio. A despeito de sua importância, o intérprete de Língua de Sinais é uma figura ainda pouco conhecida no âmbito acadêmico e os estudos existentes, que remetem ao chamado intérprete educacional, são escassos no Brasil.
Interpretar é, em poucas palavras, receber uma mensagem em uma língua e convertê-la em outra, mas não é apenas substituir palavras por outras equivalentes de outra língua. Não é tão simples quanto parece: interpretar é um processo complexo que exige altas habilidades lingüísticas, cognitivas e  conhecimento técnico. O tradutor e intérprete de Língua de Sinais é a pessoa que, sendo fluente em Língua de Sinais, também possui a capacidade de traduzir, em tempo real (interpretação simultânea) ou com pequeno lapso de tempo (interpretação consecutiva), uma língua sinalizada para uma língua oral ou vice-versa, ou então, para outra língua sinalizada.
Todos os questionamentos sobre a fidelidade da tradução cabem para com a tradução/interpretação da Língua de Sinais para uma língua na modalidade oral. Considerando que não há línguas estruturalmente idênticas, não se pode esperar equivalência absoluta de enunciados, principalmente em se tratando de línguas de modalidades diferentes... As línguas orais (auditivo-verbais) e as línguas sinalizadas (viso-gestuais) utilizam-se tanto de canais de recepção como de produção diferentes, o que, transforma a maneira como os usuários de cada língua percebem o mundo e o que está sendo dito. Logo, se está falando de três visões diferentes: a do emissor, a do intérprete e a do receptor, colocando sempre em suspeição o que está sendo traduzido.
Dificultando ainda mais, o papel do intérprete educacional está pouco delineado. Verifica-se que o intérprete em sala de aula assume uma série de funções que o aproximam muito de um educador: isso o distancia do papel costumeiro de tradutor/intérprete e gera polêmicas e incômodos. Geralmente professores sentem como se seu espaço profissional tivesse sido invadido, sentem-se incomodados com a relação mais intensa do estudante com o intérprete que com ele próprio, e, os intérpretes sentem-se cobrados para além de sua função de intérprete... Ora, cabe ao professor corrigir, elogiar, conferir as produções, questionar, todavia geralmente o professor parece delegar ao intérprete a responsabilidade pela aprendizagem do aluno surdo.
Por outro lado, no que diz respeito ao estudante, surgem questões difíceis de resolver, pois, se criança, não é simples avaliar sua própria condição lingüística e entender o papel do intérprete; geralmente a criança percebe o intérprete como um adulto disponível, e, na maioria das vezes, como seu único interlocutor.
Questões como as que seguem ainda precisam ser melhor debatidas:
A presença de intérpretes atrapalha a interação professor-aluno?
Todo professor tem que aprender a Língua de Sinais?
É possível ao professor, mesmo que conheça a Língua de Sinais, atuar numa sala de aula inclusiva sem a presença de intérprete?
Os intérpretes têm que ter conhecimento da disciplina que irão traduzir?
Quando o intérprete percebe que o aluno não compreendeu o que foi transmitido, deve continuar a tradução?
Como atuar com surdos que têm domínio restrito de Língua de Sinais?
Numa escola inclusiva, qual será a língua de maior prestígio?
Como potencializar a formação em serviço de intérpretes que usam pidgin, ou variações locais, e não a Língua de Sinais propriamente?
Esta é uma área que carece de estudos, pois, se na década de oitenta os intérpretes eram vistos como “aqueles que incentivavam o erro” (o uso da Língua de Sinais), atualmente há uma tendência de colocar sobre eles a responsabilidade de todo o trabalho educacional. A questão é complexa, pois o que se antevê, caso não haja o devido interesse pela questão, são situações indesejáveis, como, por exemplo, surdos que, mesmo com a presença do intérprete, terão que ser avaliados na língua da maioria, e, professores que não conhecem a Língua de Sinais, olhando a escrita e fala do surdo comodegenerações” da norma padrão.
O ideal seria que o professor também dominasse a Língua de Sinais, não para usá-la concomitantemente, para que avaliasse se os conteúdos estão ou não sendo distorcidos em relação à informação desejada.
Na verdade, a educação de surdos não pode se resumir a uma escolarização repassada por um intérprete: a presença de um intérprete de Língua de Sinais não assegura que questões metodológicas sejam consideradas ou que o currículo escolar contemple peculiaridades culturais da comunidade surda.
A inclusão escolar no Brasil parece ser compreendida como a aceitação da criança surda e seu intérprete em sala de aula, como se mais nenhum outro cuidado ou reflexão se fizessem necessários. Há uma falsa aparência de que a inserção da criança surda ocorre sem problemas, mas, dando voz aos intérpretes e aos surdos, é possível identificar dificuldades e insatisfações que parecem passar despercebidas ou serem negadas.
A presença constante do intérprete ao lado da criança surda pode gerar situações vantajosas, mas pode também gerar desvantagem – as decorrentes do fato de estar sempre acompanhado/fiscalizado por um adulto, o que certamente interfere no processo de desenvolvimento da autonomia tão necessária à formação da identidade.
Entendo que aos surdos precisa ser garantido o direito de freqüentar uma escola específica para surdos sempre que possível, pois no ambiente linguístico que ela propicia, é possível adquirir em idade precoce, e de modo natural, a Língua de Sinais, e que a escolarização com intérprete de Libras seja possível em etapas mais avançadas do ensino.
Em suma, diversos cursos têm sido oferecidos, inclusive de graduação e de pós-graduação, mas, a formação, a atuação e a importância do tradutor/intérprete de Língua de Sinais ainda está carecendo de divulgação e de compreensão.

REFERÊNCIAS
BRITO, Lucinda.  Integração social e educação de surdos. Rio de Janeiro: Babel, 1993.
CAMPOS, Geir. O que é tradução. São Paulo: Brasiliense, 1987.
LACERDA, C. B. F. de – A criança surda e a Língua de Sinais no contexto de uma sala de aula de alunos ouvintes - Relatório Final FAPESP Proc. nº 98/02861-1, 2000ª .
SOARES, F. M. R. A criança surda na escola inclusiva: refletindo sobre a construção da identidade. Dissertação de Mestrado. Unimep. 2002.