sábado, 10 de dezembro de 2011

OS ESTUDOS SURDOS



Este texto foi publicado na Revista da FENEIS. Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos. Rio de Janeiro. Ano IV. Nº 15, 2002.


Profa. Dra. Nídia Limeira de Sá
 
Este texto tem a intenção de abordar algumas formas através das quais a sociedade define as identidades consideradas “normais” e as “anormais”, acabando, geralmente, por oprimir um grupo em benefício de outro, pelo uso arbitrário dos poderes e saberes que nela se enfrentam. Destaca a situação dos surdos - um grupo que tem sido definido socialmente, antes de qualquer outra definição possível, como um grupo “deficiente”, “menor”, “inferior” - um grupo “desviado da norma”. Em direção contrária, este trabalho junta-se a vários outros reafirmando um movimento que visa reconstituir a experiência da surdez como um traço cultural, tendo a língua de sinais como elemento significante para esta definição. Refere-se a trabalhos que têm contribuído para os chamados Estudos Surdos.

Os Estudos Surdos têm surgido nos movimentos surdos organizados e no meio da intelectualidade influenciada pela perspectiva teórica dos Estudos Culturais, ou seja: os Estudos Surdos inscrevem-se como uma das ramificações dos Estudos Culturais, pois enfatizam as questões das culturas, das práticas discursivas, das diferenças e das lutas por poderes e saberes.
Segundo Carlos Skliar, “os Estudos Surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizadas e entendidas a partir da diferença, a partir de seu reconhecimento político” (1998, p. 5).

Uma redefinição de conceitos
 
Os Estudos Surdos se lançam na luta contra a interpretação da surdez como deficiência, contra a visão da pessoa surda enquanto indivíduo deficiente, doente e sofredor, e, contra a definição da surdez enquanto experiência de uma falta. Ora, os surdos, enquanto grupo organizado culturalmente, não se definem como “deficientes auditivos”, ou seja, para eles o mais importante não é frisar a atenção sobre a falta/deficiência da audição - os surdos se definem de forma cultural e lingüística (Wrigley, 1996, p. 12). Qualquer pessoa que tenha relativo conhecimento da comunidade surda sabe que a definição da surdez pelos surdos passa muito mais por sua identidade grupal que por uma característica física que pretensamente os faz “menos” (ou “menores”) que os indivíduos ouvintes.
O conceito de surdez, como qualquer outro conceito, sofre mudanças e se modifica no transcurso da história. Estamos atravessando um momento de redefinição deste conceito (Behares, 2000?, p. 1). Historicamente se sabe que a tradição médico-terapêutica influenciou a definição da surdez a partir do déficit auditivo e da classificação da surdez (leve, profunda, congênita, pré-lingüística, etc.), mas deixou de incluir a experiência da surdez e de considerar os contextos psicossociais e culturais nos quais a pessoa surda se desenvolve; é justamente destes aspectos, dentre outros, que os Estudos Surdos passam a se ocupar.
Quanto ao termo “surdo”, podemos dizer que é o termo com o qual as pessoas que não ouvem referem-se a si mesmos e a seus pares. Podemos definir uma pessoa surda como aquela que vivencia um déficit de audição que o impede de adquirir, de maneira natural, a língua oral/auditiva usada pela comunidade majoritária e que constrói sua identidade calcada principalmente nesta diferença, utilizando-se de estratégias cognitivas e de manifestações comportamentais e culturais diferentes da maioria das pessoas que ouvem.
Nos estudos Surdos não se utiliza a expressão “deficiente auditivo” numa tentativa de re-situar o conceito de surdez, visto que esta expressão é a utilizada, com preferência, no contexto médico-clínico, enquanto que o termo “surdo” está mais afeito ao marco sócio-cultural da surdez. Nestes Estudos se enfatiza a diferença, e não a deficiência, porque “cremos que é nela que se baseia a essência psicossocial da surdez: ele (o surdo) não é diferente unicamente porque não ouve, mas porque desenvolve potencialidades psicoculturais diferentes das dos ouvintes” ((Behares, 2000?, p. 2). Ora, a distinção entre surdos e ouvintes envolve mais que uma questão de audiologia, é uma questão de significado: os conflitos e diferenças que surgem referem-se a formas de ser.
Esta questão é tão séria que Wrigley nos impacta com uma questão: Por que muitos surdos alegam que nasceram surdos, mas, na verdade, tornaram-se surdos como resultado de alguma doença ou outras razões? Comenta o autor: “O ouvinte há de pensar que isto tem algo a ver com a idéia de ter estado doente, ou com o sentimento de perda, ou senso de culpa, pois, para o ouvinte, a surdez representa perda de comunicação, exclusão, banimento, solidão, isolamento. Para os surdos a explicação é totalmente diferente: alegar uma surdez de nascença significa não estar “contaminado” pelo mundo dos ouvintes e suas limitações epistemológicas de som seqüencial” (1996, p. 39).

As expectativas sociais para com os surdos
 
Na maioria das vezes, alheia a estas questões, a sociedade vê a surdez como uma deficiência que futuramente há de ser abolida através dos “consertos” neurocirúrgicos prometidos pela pesquisa médica, ou pela engenharia genética, ou pela prevenção a doenças (principalmente as que surgem mais nas classes desfavorecidas). O aparecimento da surdez muitas vezes é visto como um mal, um contágio, resultante das más condições sanitárias da classe desfavorecida ou da falta de cuidados familiares ou médicos, ou mesmo como uma fatalidade, como “castigo, punição, ou situação a que se estaria exposto pela purgação de culpas, da própria pessoa ou dos que a cercam” (Sá; Ranauro, 1999, p. 59).
É mais difícil ver citado o fato de que os surdos surgem aleatoriamente nas sociedades. É certo que cada surdez e cada surdo têm uma história pessoal, como a tem qualquer pessoa, mas, geralmente a surdez é encarada de maneira pejorativa, como fruto uma falha, uma culpa, uma pobreza, uma fatalidade. Na verdade, sabe-se que a surdez estritamente genética é bastante incomum, mas cientistas afirmam que 25% da população humana carregam o gen da surdez.

A história dos surdos contada pelos ouvintes
Em síntese, a história dos surdos, contada pelos não-surdos, é mais ou menos assim: primeiramente os surdos foram “descobertos” pelos ouvintes, depois eles foram isolados da sociedade para serem “educados” e afinal conseguirem ser como os ouvintes; quando não mais se pôde isolá-los, porque eles começaram a formar grupos que se fortaleciam, tentou-se dispersá-los, para que não criassem guetos. A história comum dos surdos é uma história que enfatiza a caridade, o sacrifício e a dedicação necessários para vencer “grandes adversidades”. A história tradicional enfatiza que os resultados apresentados geralmente são pequenos, mas são enobrecidos pelos esforços dispendidos para consegui-los.
Prefiro entender, no entanto, que a história dos surdos é mais produto de resistência que de acomodação aos significados sociais dominantes. Segundo Carlos Skliar, como formas de resistência ao poder do ouvintismo, os surdos se serviram de expedientes tais como: “o surgimento de associações de surdos enquanto territórios livres do controle ouvinte sobre a deficiência, os matrimônios endogâmicos, a comunicação em língua de sinais nos banheiros das instituições, o humor surdo, etc.”. Segundo ele, estes constituem apenas alguns dos muitos exemplos que denotam uma outra interpretação sobre a ideologia dominante (1998, p. 17).
Chegamos ao quadro de dominação dos ouvintes sobre os surdos porque a sociedade tem repertórios interpretativos constituídos através da História, e estes repertórios instituem poderes e definem práticas que na maioria das vezes não atendem aos interesses dos grupos colonizados. Mas, existe a resistência, e, o agrupamento identificatório dos surdos com outros iguais, possibilitou a construção de identidades que ultrapassaram/ultrapassam o pertencimento de classe e construíram identidades baseadas naquilo que alguns defendem como “etnia” da surdez. Wrigley traz uma figura interessante quando diz: “a surdez é um ‘país’ sem um ‘lugar próprio’. É uma cidadania sem uma origem geográfica” (1996, p. 12).
Esta é uma questão interessante: O grupo das pessoas surdas poderia ser considerado como um grupo étnico?”. A etnia é definida, geralmente, através de duas dimensões principais: raça e língua. No caso das pessoas surdas, a língua é uma importante categoria definidora. “As pessoas surdas são vistas como um grupo físico diferente, isto é, como se fosse uma raça diferente, ou seja, elas se tornam racializadas através da língua – de sinais – diferente que utilizam. A definição da identidade étnica é dependente de um processo em que entra em conflito a forma como um grupo dominante define a etnia e a forma como um grupo étnico se define a si próprio. (...) O local da etnia, diz Davis, é um local contestado, numa luta para definir quem definirá a etnia do grupo, quem a construirá” (1995, apud Silva, 1997, p. 11). Por esta via de interpretação pode-se observar o quanto as questões patológico-terapêuticas são distanciadas da complexidade da questão.
Caso esta “etnicidade” seja considerada, será possível construir uma escola de surdos que possibilite trocas culturais e o fortalecimento do discurso surdo, trocas que possibilitem às comunidades manifestarem sua própria produção cultural e sua forma de ver o mundo. Haverá de surgir identidades comunitárias e culturais pensadas a partir do que o grupo pensa sobre si mesmo. Desta forma os surdos poderão reconstruir seu próprio processo de educação, e terão vez no contexto escolar, afinal, é necessário dar vez às subjetividades silenciadas.
Diga-se de passagem, a interpretação aqui levantada não está baseada numa perspectiva que vê más intenções em tudo e em todos os que trabalham/trabalharam com surdos segundo outra perspectiva, significa uma tentativa de desvelamento dos critérios pelos quais nós, enquanto seres sociais, fazemos as delimitações quanto àquilo que é aceitável ou não, produzimos identidades aceitáveis e tendemos a excluir o que sai da norma. O objetivo é romper com o habitual para dar visibilidade à produção dos sentidos que vão surgindo na sociedade, fazendo com que nos posicionemos e sejamos posicionados.

REFERÊNCIAS
BEHARES, Luis Ernesto. Novas correntes na educação do surdo: dos enfoques clínicos aos culturais. Santa Maria, UFSM, [2000?] (no prelo). p.1-22

SÁ, Nídia Limeira. RANAURO, Hilma. O discurso bíblico sobre a deficiência. Rio de Janeiro: Editora Muiraquitã, 1999.

SILVA, Tomaz Tadeu. A política e a epistemologia do corpo normalizado. In: Revista Espaço, Rio de Janeiro, n. 8, 1997. p. 3-15.

SKLIAR, Carlos. Um olhar sobre o nosso olhar acerca da surdez e das diferenças. In: ______. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998b. p. 7-32.

WRIGLEY, Owen. The politics of deafness. Washington: Gallaudet University Press, 1996.



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