Este texto encontra-se
publicado na revista eletrônica Dialógica, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Amazonas. Vol. 1 N. 6. ISSN
1809-9041. http://dialogica.ufam.edu.br/expediente.htm
Prof. Dra. Nídia Limeira de Sá
Este
artigo comenta a tradicional prática avaliativa de rotular estudantes, a qual conduz
a classificações, comparações, reduções, por meio de uma avaliação estática e
psicométrica. Diz que na Educação Especial tradicionalmente a avaliação
continua medindo performances, utilizando procedimentos padronizados visando
avaliar o desempenho dos educandos tomando como base um grupo “médio” (um grupo
idealizado). Traz contribuições de Feuerstein e Vygotsky para a análise das
práticas avaliativas. Diz que nestes dois autoreso objetivo da avaliação é a superação,
não apenas a identificação da
dificuldade; em ambos o paradigma é a troca, a intervenção. Fala da Experiência
de Aprendizagem Mediada, de Feuerstein, e do postulado teórico da Compensação,
em Vygotsky. Conclui que, caso se entenda que avaliação e educação não são
momentos isolados, mas dois processos mutuamente relacionados, pode-se propor
uma avaliação mediadora e interativa, e que a “boa” avaliação é a que dinamiza
o processo do conhecimento, dinamizando oportunidades de ação-reflexão.
A
prática avaliativa na Educação Especial
No entanto, a avaliação em si pode
apresentar um lado positivo quando adquire um sentido investigativo, quando
busca um conhecimento mais amplo do avaliado, do avaliador e da situação
envolvida. Nesse sentido, a “boa” avaliação é a que dinamiza o processo do
conhecimento, é a que dinamiza oportunidades de ação-reflexão (Hoffman, 1991).
Caso se entenda que avaliação e educação não são dois momentos isolados, mas
dois processos mutuamente relacionados, pode-se propor uma avaliação mediadora
e interativa.
Nessa direção, posicionando-se contra
uma compreensão fixa das práticas de avaliação, surge Reuven Feuerstein
trabalhando com uma visão de avaliação dinâmica na qual níveis de competência não são confundidos com medidas de potencial, tomando como base a Experiência de
Aprendizagem Mediada. Em outras palavras, Feuerstein propõe não a avaliação de
performances momentâneas, mas a avaliação do potencial de aprendizagem,
trazendo para a prática avaliativa um caráter pedagógico. Avaliação, para esse
autor, é avaliação do potencial, não avaliação do déficit.
Feuerstein, em sua visão de avaliação
mediadora, aproxima-se de Vygotsky e do seu postulado de Zona do Desenvolvimento
Proximal (Vygotsky, 1984). Tanto em Feuerstein como em Vygotsky o objetivo é a superação, não apenas a identificação da dificuldade; em ambos o
paradigma é a troca, a intervenção.
A idéia mais marcante na postura de Feuerstein
é a de “modificabilidade”. Para ele a tarefa do avaliador é a de explorar o potencial do educando e
identificar o que pode ser modificado pela aprendizagem, por meio de um
processo de interação. A proposição de Feuerstein é a de se proceder a uma
Avaliação do Potencial de Aprendizagem (LPAD - Learning Potential Assessment
Device) visando que esta avaliação conduza a um Programa de Enriquecimento (IE
- Instrumental Enrichment). Em outras palavras, a questão da avaliação em Feuerstein
refere-se à medida em que a condição que
uma pessoa apresenta, num momento, pode ser passível de mudança. A grande
questão para ele é a de como avaliar
a mudança.
Feuerstein colocou-se contra o uso de medidas psicométricas comparando seu uso com o de procedimentos que, diante de uma doença, identificam-na, mas não visam sua cura... como o uso de um termômetro que mede a febre mas nada faz contra ela. Segundo ele a única avaliação razoável na prática educativa é a que mede traços que mudam, e não a que seja insensível às mudanças sob o pretexto de ser fidedigna.
Segundo Feuerstein, uma avaliação tem
que levar em conta toda a condição do avaliado, tem que considerar inúmeras variáveis e não apenas escores de testes, visto
que há evidências do grande impacto que o meio exerce no desenvolvimento
individual, e isto não é feito pelas práticas tradicionais. Nessas avaliações psicométricas tradicionais as
diferenças estáveis são atribuídas a determinantes genéticos, a fatores
orgânicos e a fatores experienciais que produzem estados irreversíveis, e, por
esta visão concluem que há estabilização nas condições e capacidades dos
educandos, o que gera uma prática diagnóstica injusta. (Feuerstein, 1979). Na
visão de Feuerstein, ao contrário, a capacidade exposta a julgamento num dado
momento é uma capacidade em processo de
superação.
Para Feuerstein as variáveis educacionais podem/devem
promover a suplantação dos déficits
orgânicos ou experienciais. Nesse sentido mais uma vez combina com Vygotsky
quando este originalmente propôs uma visão compensatória ao defeito, sugerindo
que é possível desenvolver, por meio de uma educação adequada, uma compensação
de caráter psicossocial (Vygotsky, 1989).
O postulado teórico da compensação é o postulado essencial por ele (Vygotsky) apresentado na área da Defectología; não se refere a uma compensação de caráter biológico (como se a compensação se operasse somente a partir do desenvolvimento dos resíduos auditivos, do tato, etc.), antes, crê que a compensação se desenvolve em nível social e psicológico, e surge a partir do interrelacionamento das condições sócio-econômicas, culturais e educacionais em meio às quais se educa a criança. O peso que ele colocou à compensação de cunho social deve-se ao fato de que qualquer interpretação sobre o “defeito” é mediada pelo grupo social no qual a pessoa está inserida. (Sá, 1996, p. 18)
Vygotsky propõe três princípios
seqüenciais que explicam o percurso de uma criança portadora de algum tipo de
deficiência.
Aqui está o princípio e o fim, o alfa e o ômega. Esses três momentos desse processo se podem representar cronologicamente da seguinte maneira:
1) a inadaptação da criança ao meio sócio-cultural cria poderosos obstáculos na via de desenvolvimento de sua psiquê (o princípio da condicionalidade social do desenvolvimento);
2) estes obstáculos servem de estímulo para o desenvolvimento compensador, se convertem em seu ponto objetivo e dirigem todo o processo (o princípio da perspectiva do futuro);
3) a presença de obstáculos aumenta, faz aperfeiçoar-se as funções e conduz ao vencimento destes obstáculos, isto é a adaptação (o princípio da compensação). (1989, p. 141)[1]
Vygotsky não supõe com tal afirmação
que o processo da compensação sempre
conduz ao êxito, ou que o fato de crianças portarem algum tipo de deficiência
lhes sirva como garantia do desenvolvimento de características psíquicas
positivas, o que o autor coloca é que as “forças
positivas postas em ação pelo defeito” só se concretizarão caso
circunstâncias sociais (e aqui se incluem com especial destaque as práticas
avaliativas e as educacionais) sejam trabalhadas de tal modo que seja possível
o entrelaçamento positivo de todas as dimensões que compõem a complexidade
humana.
Vygotsky se preocupou em apontar o
futuro e as suas possibilidades, haja vista a sua enunciação do pressuposto da
“zona de desenvolvimento proximal”[2],
que se refere às funções que estão em processo de formação, sobre as quais
se deve apoiar todo o trabalho
educacional - e não tanto no já alcançado pela criança.
Considerando que a
aprendizagem orienta e estimula processos internos de desenvolvimento, na
abordagem do ensino a crianças portadoras de deficiências a perspectiva do
futuro também foi introduzida, ocasionando uma visão positiva das
circunstâncias especiais (e muitas vezes tão negativas) nas quais estão inseridas.
Esta visão positiva pode motivar tanto a pessoa como o profissional,
impulsionando ações baseadas na expectativa de sucesso e não de mero
assitencialismo, levando-os a acreditar no desenvolvimento de capacidades,
resultando numa controvérsia à ineficiência. (Sá, 1996, p.21)
Quando Vygotsky postulou que as leis
do desenvolvimento são as mesmas para todas as crianças e afirmou a importância
dos aspectos sociais da aprendizagem, deixou claro que é necessário considerar
não apenas “a gravidade da dificuldade, mas também a eficiência da estratégia
pedagógica utilizada para ajudar a superar o problema” (Daniels, 1994).
Vygotsky e Feuerstein se encontram ao proporem uma pedagogia voltada não para o passado, mas para o futuro. Com base nesses dois autores torna-se possível defender uma prática avaliativa na escola que funcione como ponto de partida, que possibilite intervir na situação avaliada a fim de transformá-la, de ampliá-la; um tipo de avaliação que vise levar a uma reorganização do saber que se tem sobre o outro, sobre sua capacidade, sobre a situação de avaliação e sobre o próprio avaliador; uma prática que inclua aspectos afetivos, culturais, psicológicos, sociais, ao lado dos cognitivos.
Baseados numa visão interativa de
educação e de avaliação, e, considerando que o sistema educacional deve ser
organizado no sentido de atender a cada educando dentro de sua especificidade,
como garantir uma prática educacional que supõe uma avaliação interativa se os
educadores em sua maioria desconhecem as questões implicadas na situação dos
educandos surdos?
Há valor na prática avaliativa que
visa a identificação das dificuldades do educando baseada no conhecimento do
contexto geral no qual está imerso o avaliado, com o fim de intervir
adequadamente, mas, como é possível uma avaliação nesses moldes - uma avaliação
pedagógica - se pressupostos básicos da educação de surdos têm sido negados ou
continuam desconhecidos pela maioria dos educadores que com eles trabalham, que
em nome deles falam, e que sobre seus destinos educacionais exercem poder?
Considerando que é responsabilidade da
escola atender às peculiaridades de todas os educandos, urge que os educadores
tomem conhecimento de aspectos que têm sido levantados por diversos
especialistas na área, bem como pela própria comunidade surda que tem se
posicionado e resistido à exclusão escolar. Segundo Skliar “os problemas na
educação dos surdos se referem, de uma certa perspectiva, à dificuldade dos
ouvintes que trabalham com os surdos para identificar e definir quais são esses
problemas” (1997, p. 261).
Uma prática avaliativa eficiente é a
que oferece informações qualitativas sobre o potencial de aprendizagem e sobre
as necessidades pedagógicas dos educandos; para que isto seja possível quanto
aos surdos, é necessário que haja uma reorganização do saber que se tem, um
mais adequado conhecimento sobre o sujeito surdo e sobre as implicações da
surdez.
A prática avaliativa, que aqui está
sendo ressaltada, é aquela que gera reflexões, que gera compromisso com o
acompanhamento do processo de aprendizagem dos educandos. No caso dos surdos,
portanto, não interessam as avaliações que são fruto de uma mera comparação de
performances de ouvintes e surdos. Interessa uma prática avaliativa pedagógica
que gere conscientização das desigualdades individuais, sociais e culturais.
Interessa, também, promover uma postura cooperativa entre os elementos da ação
educativa (Hoffman, 1991), o que não deve significar “promover” para séries
mais avançadas sem o conhecimento relativo, contemporizar, fingir que está
ocorrendo aprendizagem, ou procedimentos desse tipo, em nome da “compreensão”,
da compaixão ou da camaradagem. É necessário promover uma consciência crítica e
responsável sobre o cotidiano da educação de surdos; é necessário desenvolver
uma adequada compreensão sobre o surdo e sobre a surdez, caso se admita a
validade de uma prática avaliativa realmente interativa.
O surdo não é simplesmente um estudante
“igual” aos outros com a única diferença de que não escuta. Não se pode
simplesmente incentivar uma “inclusão” nas classes do ensino regular com a
proposta de trabalhar com ele tal como se trabalha com os educandos ouvintes
(talvez com o tempo utilizado para o aprendizado dos conteúdos curriculares
multiplicado por dois, ou por três, ou indefinidamente). O surdo é alguém
inserido no contexto de sua realidade social, e a realidade da educação dos
surdos começa pelo atendimento ao direito inalienável que têm todas as pessoas
de serem educadas em sua língua materna, em sua língua natural (Unesco, 1954).
Essa pressuposição implica numa educação bilíngüe e bicultural, não no sentido
lingüístico, mas no sentido pedagógico (Skliar, 1997; Sá, 1996), para a qual a
maioria dos educadores, e o sistema educacional de modo geral, não estão
preparados.
É necessário que a surdez não seja
definida como uma deficiência, mas como “uma construção histórica, comunitária,
lingüística e cultural”, visto que a comunidade, a língua e os fatos culturais
característicos determinam as diferenças dos surdos em relação a qualquer outro
grupo (Skliar, 1997, p. 249). No entanto, não é isto o que acontece ainda hoje
em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, onde ainda é muito forte a visão
clínico-terapêutica da surdez, ocasionando uma prática avaliativa psicométrica,
normatizadora, que entende a surdez como deficiência e o sujeito surdo como
sujeito patológico.
Conforme denuncia Skliar (1997), este entendimento leva a uma tentativa de aniquilação dos aspectos lingüísticos, cognitivos, culturais e comunitários que dizem respeito a esse grupo, e, é sugestivo observar que essa situação não se assemelha, sob qualquer aspecto, à que estão sujeitos indivíduos pertencentes a grupos de outras deficiências.
Longe
de querer enquadrar a questão em uma bipolarização absoluta (ouvinte X surdo),
é necessário entender que a questão da avaliação de pessoas surdas calca-se em
uma complexidade que precisa ser enxergada numa perspectiva multicultural,
visto que os surdos também não se enquadram numa única categoria cultural. Para
exemplificar, pode-se pensar nas diferenças culturais que existem entre um
surdo negro e um surdo branco e rico, entre uma surda negra e trabalhadora da
zona rural e uma surda escolarizada e empregada na cidade. Assim, caso se
queira proceder a uma prática avaliativa interativa é necessário entender que
só é possível interagir quando há um mínimo de entendimento sobre o outro, por
isso é imprescindível saber que no universo da educação de surdos existem
questões culturais, curriculares, de identidade, que precisam ser conhecidas e
consideradas, pois que compõem o meio
no qual o educando surdo está inserido.
Se o que se busca é uma avaliação com
qualidade pedagógica, o processo avaliativo na educação dos surdos sob esse
prisma certamente levará a uma reflexão sobre as respostas que a escola tem
dado a essa parcela dos educandos. Sabendo-se que historicamente transcorreu
mais de um século com ênfase na oralidade e nos modelos ouvintes - o que
conduziu a grande maioria dos surdos a uma verdadeira exclusão escolar, vê-se a
importância de um processo avaliativo interativo que considere a realidade dos
dois lados: do lado do desconhecimento das características de quem é educado, e
de quem educa (afinal somos ouvintes tentando educar surdos e jamais saberemos
em sua amplitude o que é ser surdo - ainda que tapemos os ouvidos por dias).
Para intensificar o que foi dito sobre a educação de surdos, convém observar o
que diz Skliar:
“não
existe outra área da educação que mostre, em si mesma, tanta intolerância, na
reconstrução do seu passado, tanta incompreensão na percepção de sua atualidade
e tantas divergências na perspectiva de sua vida futura” (1997, p. 244).
Na questão da avaliação, o importante
é que sejam enfatizadas as potencialidades do educando, e, para que o aluno e a
comunidade surda sejam intermediados num processo avaliativo e pedagógico
eficientes, faz-se necessário que os educadores tenham uma visão adequada do
fazer, do saber, do conviver e do ser surdo. É necessário escapar do imperativo
dominante segundo o qual os surdos têm que falar e ser como os outros
(ouvintes), mas recorrer a modelos sócio-antropológicos nos quais a comunidade
de iguais e a língua de sinais exerçam papel fundamental. Sem esta visão
revitalizadora do contexto cultural e educacional para surdos, vai-se continuar
minando a construção das identidades dos surdos, sua cidadania, seu potencial
para o trabalho, sua linguagem e sua cultura.
A avaliação não pode ser um momento
terminal ou estanque do processo educativo, mas um caminho de busca do
conhecimento a respeito das pessoas envolvidas e da situação de aprendizagem,
gerando uma revitalização de novas oportunidades de aprendizagem real e de
trocas significativas. Se mesmo entre educadores e educandos que se inserem
numa mesma categoria - ouvintes - determinadas tarefas têm sido consideradas
como representativas da competência total dos avaliandos, de quão maior risco
está sujeita uma prática avaliativa que desconhece o potencial da pessoa surda.
Isto leva a fazer recair sobre os surdos desvios e impossibilidades que o
próprio sistema educacional criou.
Referências
Amaral, Ligia A. Sociedade e deficiência in Revista Integração, ano 4, nº
9. MECDaniels,H. Vygotsky em foco: pressupostos e desdobramentos. Campinas, Papirus, 1994.
Feuerstein, Reuven. The dynamic assessment of retarded performers: the learning potential assessment device, theory, instruments and techniques. Baltimore: University Park Press, 1979.
Hoffman, Jussara. Avaliação: mito e desafio. Uma perspectiva construtivista. Porto Alegre: Editora Mediação, 1991.
Sá, Nídia Regina L. Educação de surdos: a caminho do bilingüismo. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1996. (Dissertação de Mestrado)
Skliar, Carlos B. A reestruturação curricular e as políticas educacionais para as diferenças: o caso dos surdos in SILVA, Luis Heron da (Org.). Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997.
Unesco. Las lenguas vernáculas en la enseñanza. Paris, Ediciones de
Vygotsky, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984
_________________. Fundamentos de defectología. Obras Completas. Tomo V Cuidad de
[1] Citações
traduzidas do espanhol pela autora.
[2]
Segundo Vygotsky, “ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que
se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (1984,
p.97).