sábado, 17 de dezembro de 2011

MEU MEMORIAL APRESENTADO PARA CONCURSO NA UFBA


Este Memorial é dedicado
à minha filha Nívia,
que ainda não pode dimensionar
como foi importante na minha vida, e
a minha família,
que me tem dado um gosto bom de viver.

O ECO
 “Que fazes tu sobre a terra? E o eco responde: Erra!”   Castro Alves

O que posso fazer se, a vida, a glória fez-ma
rotineira, a ilusão não muda, é sempre a mesma?
Que fazer se o prazer é sempre essa utopia
de um minuto feliz?! A maior alegria
é ligeira e fugaz como uma gargalhada,
... inunda a sala e cessa e volta para o nada?...
Que fazer para ter alguma recompensa?
Mecânico e fatal o eco responde... pensa...

Pensar? como pensar? perder a mocidade
no egoísmo sem razão dessa unitilidade...
Pensar apenas? não teria acaso um fim,
pensar, pensar, pensar, pensar... de mim e para mim?
esgotar a existência em um plano ilusório,
sozinho usufruir da paz de um escritório?
Quero menosprezar a vida dissoluta...
Mecânico e fatal o eco responde:... luta...

Lutar... por que lutar... ver bandeiras ao vento,
tambores e clarins, galões e fardamentos,
ver sangue a jorrar em vis revoluções,
ver Césares, Pompeus, Felipes, Napoleões?...
Lutar... por que lutar, se essa glória que embriaga
tem o brilho na aurora e no poente se apaga?...
Quero mais, muito mais... Quero a brisa que inflama!
Mecânico e fatal o eco responde:...ama...

Amar... amei a vida e a vida é tão ingrata...
“Traz o pó que alimenta o micróbio que mata”...
Não, de modo nenhum, permaneço na teima...
“a fogueira que aquece é a mesma que nos queima”.
Amar... de que nos vale amar, se o amor é vário,
se ao beijo tem seqüência as dores do calvário?...
Quero fugir do mundo e procurar a calma...
Mecânico e fatal o eco responde: Alma...

 Alma... quando escutei esta palavra, quando
meditei, vi que havia uma força operando
além da compreensão ... vi que o meu ódio acerbo
era a minha impotência ante o mando do Verbo.

Quando, porém notei que a paz aurifulgente
está em nós firmada... algo puro, inerente
ao nosso próprio ser... chama viva e sagrada
que opera no interior sem depender de nada;

Alma... quando notei que em meu corpo carnal
morava um universo, uma essência imortal;
entreguei-me a Jesus e, firmado em seu nome,
na vivificação matei a minha fome...
Pensei... Lutei... Amei os meus irmãos.
E agora em mim revive
a encantadora voz do eco bradando: VIVE!                                                                                      Gióia Júnior


INTRODUÇÃO

            Memórias bem guardadas protegem. Memórias reveladas expõem. Difícil tarefa é selecionar o que guardar, o que revelar, o que tentar esquecer. Se se tem a chance de escolher o ouvinte, o interlocutor, tanto mais fácil, mas... se se escreve...



As entrelinhas / do intertexto / se interprenetram e velam o dito / e circundam / e escondem o exposto e  / revelam / e refletem / todo o universo / plural do texto / que desde sempre lá estivera / alinear / no interdito.[1]

            A tarefa que diante de mim se apresenta é a de refazer a minha trajetória de vida enfatizando as experiências profissionais e acadêmicas, bem como os interesses teóricos, já que os principais leitores deste “Memorial”, nessa circunstância especial, são membros da academia imbuídos de uma tarefa de avaliação, ou de seleção. Justamente aqui está a maior dificuldade, aquela que suscita as maiores contradições, pois que um “Memorial” só pode ser escrito com muito conteúdo emocional, se se quer ser honesto, mas exige uma característica de objetividade e coerência que, ao começar, dá a certeza de que a tarefa é penosa, custosa, ... e emocionante.
            Aqui evocarei meus referenciais, falarei dos meus questionamentos, das realizações, das apreensões, das escolhas, e, tentarei acentuar as principais parcerias, que despretenciosa ou intencionalmente foram acontecendo. Falarei de um encontro muito especial nesse último período da minha vida: a amizade e orientação acadêmica do Profº Drº Carlos Bernardo SKLIAR, alguém que me tem feito ver com clareza as cores da bandeira que precisa ser levantada caso se deseje efetivar as urgentes mudanças na educação da minoria surda.
            Mostrarei que sobre e sob minha trajetória e meu projeto de vida estão pessoas, idéias e ideais, e, procurarei datar e localizar o processo de construção enquanto trabalhadora da educação, no qual estou envolvida. Enfim, a questão maior que está latente na apresentação de um “Memorial”, num concurso que visa novo espaço na carreira do magistério superior público, é a necessidade de mostrar que caminhos individuais e coletivos são seguidos para chegar a ter o que dizer e contribuir nesse país.
     
MECÂNICO E FATAL O ECO RESPONDE... PENSA...

            João Limeira, trabalhador sem-terra do interior de Pernambuco, passava os dias na lavoura, no terreno de um ou outro “patrão”, plantando algodão para o dono da terra, e feijão e milho para sustentar seus seis filhos. Volta e meia se aborrecia muito, pois, o dono, antes que terminasse a colheita que lhe cabia, soltava o gado na roça para comer e destruir o que por direito era seu. Seu filho mais velho, o Antonio, com onze anos de idade, não quis mais ir para a roça, pois trabalhar com o pai significava ter que deixar a escola de que gostava tanto. Resolveu, então, arranjar emprego na cidade mesmo... pois não podia deixar de contribuir na renda de casa. Fazia mandados, limpava quintais, mas não deixava de ir dia a dia para a escola, única da cidadela. Antonio, garoto “cabeça-chata”, era muito vivo e esperto, mas muito mijão, porisso, volta e meia era acordado bem cedinho, pela sua professora, também beata do lugarejo, para ir às pressas, fedido mesmo, para a igrejinha onde exercia o posto de sacristão. Por baixo da bata, sabe Deus... A professora por volta dos seus quatorze anos arranjou para que Antonio fosse estudar no Seminário, mas, àquele tempo já era namorador, então desistiu da “vocação”.
            Desse relacionamento marcante e gostoso com a professora da Escola Estadual - escola de uma turma só -, surgiu na mente do agora homem feito, a idéia de homenagear aquela querida, que havia se tornado freira, dando o nome dela a sua primeira filha: Nídia. As recordações eram tão boas e o sentimento tão forte que venceu o constrangimento por ter sido motivo de “desgosto”[2] para ela ao deixar a Igreja Católica e virar Protestante, depois de dar ouvidos à palavra de um missionário neo-zelandez que insistia em conversar com aquele rapaz - pedreiro de obras, agora fugitivo da seca na Bahia.
            Tendo apenas o “Primário”, Antonio foi para o Rio de Janeiro estudar no Seminário dos protestantes. Casou com sua professora de Português, que era também colega de curso, depois voltou para a Bahia a fim de trabalhar na sua igrejinha de origem. Sendo uma figura controvertida, nunca recebeu salário da igreja e trabalhava secularmente. Envolveu-se em muitas disputas apologéticas com os padres naquela época em que predominava o catolicismo no lugar. Analisando a condição do homem do campo e desejando ardentemente a Reforma Agrária, apoiou abertamente, para a Prefeitura, o candidato de oposição à UDN; este foi eleito com uma margem de 27 votos, e, diante do fato, sua vitória foi atribuída ao trabalho do pastor. Com o golpe militar de 1964, seu amigo foi deposto e preso, então, resolveu ir para o Rio de Janeiro antes que algo semelhante lhe acontecesse.
            Nesse contexto familiar fui sendo criada com meus três irmãos. Todos em escolas públicas, Fomos sempre bem assistidos pela mãe que também era professora primária. Sendo de uma classe média baixa, havia certa falta de dinheiro e de conforto, mas “o estudo” sempre foi prioridade na família. Conseguimos, inclusive, um piano de segunda-mão (talvez terceira ou quarta!) no qual passei a estudar, o que me possibilitou passar no concurso para Técnico em Música, da Escola Nacional de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde estudei por dez anos seguidos. Lembro que não havia dinheiro para roupas adequadas, para passeios, para lanches, mas para os livros, para as passagens de ônibus ou trem, para as partituras, nunca faltou. Estudar era o que eu fazia todo o tempo.
            Aos dezessete anos entrei na faculdade; esta foi a época em que comecei a me posicionar como alguém que pensa sobre seus próprios referenciais. O que primeiro tive que resolver intimamente foi a questão da integral contradição e antítese da cosmovisão marxista em face da cristã, visto que minha educação familiar me forneceu um referencial religioso que eu precisei questionar ao penetrar na dimensão acadêmica, onde a visão de mundo era eminentemente materialista. Comecei a analisar o marxismo enquanto uma filosofia e um programa. Verifiquei logo que, como um todo, esse referencial de análise é incontornavelmente ateu. A partir dele seria possível avaliar minha “identificação com o solene”? Como equacionar as idéias, já que eu me identificava com muitos aspectos denunciados pelo marxismo, mas não sabia como conviver com ele uma vez que para muitos marxistas esse referencial apresenta-se como antítese ao cristianismo que eu cria? Eu queria ver triunfar a justiça político-social, procurar ajudar os pobres a alcançar uma vida melhor e ao mesmo tempo levá-los a compreender as causas de sua opressão; tinha sentimento de indignação em face das injustiças e exploração praticadas pelos sistemas econômicos...
           Entendi que a maioria dos mestres marxistas considera toda religião irrelevante, supersticiosa e anticientífica (diga-se de passagem que, na verdade os marxistas têm sido alimentados com estereótipos do cristianismo), e, de fato têm razão ao analisarem a história e verem que a religião no decorrer do tempo provou ser reacionária em sua incapacidade e desinteresse em fazer frente às duras realidades da vida moderna, e em sua incapacidade de ver que há necessidade de mudanças radicais na estrutura econômica da sociedade. De fato a maioria das igrejas, com raras exceções, geralmente têm promovido uma religião burguesa, desestimulado o crescimento da consciência de classe entre os trabalhadores, traficado a superstição e uma falsa representação da realidade, sendo sustentáculo, no passado e no presente, do status quo político, econômico e social e se identificado com o autoritarismo e com as classes dominantes. Infelizmente ainda não conseguiu se identificar com os interesses da classe pobre, oprimida, nem estabelecer formas de solidariedade e ação com os que sofrem as conseqüências do egoísmo, da exploração e da injustiça. Ou seja, é comum se verificar a impecabilidade do discurso cristão desacompanhado de qualquer prática iluminada por ele.
            No meio de toda essa incoerência histórica, concluí que adotar uma atitude crítica em face do imperialismo, do colonialismo, do neocolonialismo, ou do capitalismo... não é, necessariamente, criar vínculo com um socialismo rígido, ateu. Penso ser possível me declarar materialista apenas no sentido de considerar as condições históricas materiais, mas não no sentido de entender a humanização do homem a partir da, e tão somente pela, dimensão material/econômica.
          Nesse intermezzo foi possível aproveitar toda a leitura crítica do marxismo sem abrir mão de questão essencial: a de que a plena humanidade só se encontra no relacionamento com o Criador. Assim, pude me encontrar numa proposta de justiça social iluminada por uma teologia holística.
            Após evocar a saga do pai retirante da seca e a influência cristã da família - meus primeiros referenciais - posso caminhar nas memórias das marcas do meu caminho.

MECÂNICO E FATAL O ECO RESPONDE: ALMA...
            Minha visão de homem é a de um ser eterno, mas histórico; espiritual, mas materializado; individual, mas coletivizado; criador, mas criatura; concreto, mas desejante; e, em meio a tantas contradições, ainda alienado do universo, das outras pessoas, e de si mesmo (como resultado da alienação primária que se instalou entre ele e o Criador). Meu interesse inicial, então, foi dirigido para uma necessidade de conhecimento maior dessa parte que faz o homem tão especial no universo: a alma. No desejo de saber mais sobre esta dimensão interessei-me pelo estudo da Psicologia, optando por fazer o curso de Formação de Psicólogo.
            Trabalhei alguns anos em empresas, mas meu objetivo final era chegar ao ponto de atuar num consultório clínico, atentando para o aspecto individual que me fascinava. Consegui realizar meu objetivo enquanto morava no Amazonas. Mas, a carreira do magistério superior me atraiu, e, tendo assumido compromisso pela dedicação exclusiva na universidade, imediatamente encerrei as atividades no consultório. Confesso que inicialmente o que exerceu sobre mim maior atração foi a questão financeira (atitude bem pouco idealista, engajada, ou progressista, mas muito real quando se tem três filhos).
            Avalio que na realidade não tinha muita clareza do que significava estar numa Faculdade de Educação, ou a responsabilidade social que estava por trás. Acho importante colocar isso aqui até mesmo para que se possa verificar como, muitas vezes, acontece no Brasil a formação de um educador. Penso que os cursos que freqüentei na própria universidade, as discussões que travei com os colegas, os livros que li, as parcerias que fiz, a própria convivência com os alunos e na Associação dos Docentes, contribuíram para que fosse forjado em mim um compromisso e para que fosse alargada minha compreensão da Educação enquanto dimensão social e humana. Após muita reflexão pude entender que a Educação, que também contém a dimensão da alma (e se não contém há alguma coisa errada com essa visão sem a afetividade, sem o desejo), embute uma dimensão mais ampla: a socio-histórica. Essa dimensão refere-se à influência e mútua interferência do outro, do grupo, do contexto, na história de vida de cada indivíduo bem como na feição da sociedade como um todo. Julguei-me, então, realizada também nessa vertente. Uma parceria enorme se inscreve aqui.
            Ao cuidar em estudar e trabalhar na dimensão da alma, seja pela Psicologia seja pela Educação, a dimensão do amor se fez mais forte para comigo quando me vi mãe-educadora de uma criança deficiente (na época era o que eu enfatizava). Enquanto educadora eu precisava dar uma resposta educativa a esta situação, mas eu não sabia o que se deve fazer para possibilitar o desenvolvimento das potencialidades, a construção de uma auto-estima adequada e a efetiva cidadania das pessoas surdas.

 MECÂNICO E FATAL O ECO RESPONDE: AMA...

            Na dimensão do amor trago à memória minha filha surda, através de quem fui despertada para a problemática da educação dos surdos. De fato, chegou o momento em que percebi que o amor apenas não dava conta de resolver os processos de exclusão, aos quais a minoria surda está submetida no Brasil e na maior parte do mundo. Muitas crianças surdas têm sido atendidas na dimensão do amor, isto é inegável (percebemos a dedicação de muitos profissionais que historicamente têm perseguido uma condição de “integração” para os surdos), mas, o amor não é suficiente para atender adequadamente aos interesses desse grupo.
            Havia ingressado na Universidade do Amazonas para trabalhar nas disciplinas da Psicologia da Educação, mas, percebendo que não era possível cuidar da educação dos “outros” sem uma resposta à problemática de quem se ama, consegui uma transferência para a Universidade Federal Fluminense (pois julgamos que seria mais fácil conseguir as respostas no contexto do Rio de Janeiro). Imediatamente comecei a cursar o Mestrado em Educação na área da Educação Especial, e, atuando como docente na UFF, comecei a desenvolver atividades de extensão na área da educação de surdos - temática da minha Dissertação de Mestrado. Gradativamente fui intensificando meu interesse pela área, e oferecendo regularmente, no conteúdo curricular “Atividades”, sessenta horas-aula dirigidas às questões da educação de surdos. Na Faculdade de Educação da UFF coordenei diversos eventos e atividades de extensão, com os quais fui tornando-me conhecida dos profissionais da área no Rio de Janeiro e da comunidade surda. Esses eventos, como: o Simpósio estadual de educação de Surdos, o Encontro de Professores e Alunos Surdos, o Encontro de Surdos na UFF, sempre traziam à Universidade cerca de 150 participantes. Nessa Universidade a equipe de professores que trabalham com Educação Especial é muito atuante, mas não abordavam com profundidade a problemática dos surdos, dada a especificidade da questão. Sendo assim, logo fui convidada a contribuir com meus conhecimentos, tanto na graduação quanto na Pós-Graduação (lato sensu), no Curso de Especialização em Educação Especial, o qual passou a ter 32 horas-aula destinadas ao “Fazer Pedagógico com o Alunado Surdo”. Desde esse tempo tenho tido a oportunidade de proferir palestras no Rio de Janeiro e em Alagoas, seja em Secretarias Municipais, em escolas públicas ou particulares, em ONG’S, enfim. Passei até mesmo a participar da diretoria da APADA/Niterói (Associação de Pais e Amigos do Deficiente da Audição) e do Conselho Estadual para Políticas de Integração das Pessoas Portadoras de Deficiência.
          Sempre interessada na integração da Universidade com a problemática da educação regular, envolvi-me no Projeto VAI (Vivendo e Aprendendo - Integracão UFF - Escola), no qual representei a Universidade junto à Escola Estadual Especial Anne Sullivan; nesse Projeto tive a oportunidade de participar dos cursos de capacitação de professores e de coordenar cursos de Língua de Sinais para professores e pais da escola. Gosto de citar, no entanto, que minha primeira experiência na área da extensão foi quando participei do “Projeto de Integração da Universidade do Amazonas com a Melhoria e Expansão do Ensino em Pré-Escola e Primeira a Quarta Séries da Rede Estadual”, coordenando o sub-projeto “Cursos de Capacitação e Atualização de Docentes que Atuam ou Irão Atuar no Processo de Alfabetização”. Nesse projeto, visitando municípios do interior do Amazonas, pude conhecer um pouco da realidade das escolas de periferia, e entender a responsabilidade social que pesa sobre a Universidade que se queira comprometida com o povo.

MECÂNICO E FATAL O ECO RESPONDE: LUTA...

               Percebi que além do amor era preciso a luta. Luta por alterar o quadro de exclusão que aí está, no qual os surdos não têm podido construir seus conhecimentos, vencer o fracasso escolar, desenvolver sua potencialidade, realizar-se enquanto pessoa, conquistar sua cidadania, e, muitas vezes, nem conviver com seus iguais. Percebi que além de trazerem uma história de insucessos, suas dificuldades são aumentadas pelo fato de que a escola ainda não encontrou uma resposta adequada para educativamente potencializá-los para a vida, principalmente para a dimensão do trabalho, o que acarreta outros desajustes (afetivos, familiares, econômicos, etc.).
            A bandeira de luta pela educação bilíngüe-bicultural que carrego hoje foi sendo delineada paulatinamente a partir dos estudos que fiz e dos lugares onde andei.  Esta refere-se a uma abordagem educacional que visa desfocar o processo educativo de surdos do aspecto meramente lingüístico (língua gestual versus língua oral) e enfatizar o aspecto sócio-antropológico, vendo a pessoa surda enquanto participante de uma comunidade cultural cujo fator aglutinante é a língua de sinais e que, por questão de direito, tem que ter a oportunidade de participar do processo educativo em sua língua natural.
            A história dos surdos não pode continuar tal qual no passado - sem considerar sua língua natural, sua cultura, sua “voz” e sua vez. As atitudes e estereótipos sociais e individuais sobre a surdez e sobre os surdos precisam ser mudados, mas isso começa com o desvelamento da verdade que se dá por um estudo científico comprometido com as minorias, e também pela socialização desses conhecimentos. Caso correta esteja uma frase que se encontra pintada numa das salas da Universidade de Gallaudet - Universidade para surdos nos Estados Unidos - “A informação é o início da aceitação”, podemos crer que é a falta de conhecimento que leva tantas famílias de surdos a errarem, ao impedir que seus filhos convivam na comunidade surda, e é também o que leva educadores a não conseguirem propor uma situação pedagógica que torne a escola possível para os surdos.
            Nos caminhos da busca do conhecimento ouvi falar a respeito do trabalho que o professor Carlos Skliar estava realizando no sul do Brasil, isto quando visitei a Escola Especial Municipal Helen Keller, em Caxias do Sul. Não o conheci pessoalmente, mas admirei seu trabalho.
            Por ocasião da apresentação da minha Dissertação no Curso de Mestrado, por tratar-se de um tema muito específico, tivemos dificuldades em compor a Banca Examinadora, visto que no Rio de Janeiro não tivemos notícia de algum doutor em educação que tenha a educação de surdos como objeto de seu interesse - tínhamos somente lingüistas. Convidamos, então, o professor Skliar para a Banca. Após a leitura do trabalho e diante das conversas que ocorreram por apresentação do mesmo, ficou claro que haviam interesses mútuos e afinidade de idéias. O interesse pelo Doutorado em Educação é decorrência normal de quem se inclui num Programa de Capacitação Docente, mas a opção pela temática das “Políticas Educacionais para Surdos” representou grandes e sérios arranjos. Refiro-me às mudanças que tivemos que fazer, enquanto casal com três filhos pequenos - uma surda, inclusive, para o Rio Grande do Sul. Mas, nosso olhar não estava nas dificuldades, e, sim, nas vantagens de estudar com quem se aprofunda na discussão da surdez.
            Fazer o Curso de Doutorado com a orientação do professor Skliar, e, com ele desenvolver alguns trabalhos, foi uma oportunidade preciosa que a vida me reservou. O referencial teórico no qual se baseia - a abordagem sócio-antropológica e os Estudos Culturais - e a maneira como entende a problemática da gestão das políticas educativas para surdos, ampliaram em muito a minha visão sobre a questão.   
            Outro fato importante, no percurso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi a parceria com professor Hugo Otto Beyer - a outra “metade”da linha de pesquisa na qual trabalhei. Tive a oportunidade de ouvi-lo no Quinto Seminário Brasileiro de Pesquisa em Educação especial, realizado na Universidade Federal Fluminense, onde eu atuei durante o período do Doutorado. Estes dois pesquisadores buscavam analisar os processos de exclusão e participação em Educação Especial, de forma que as análises da problemática do alunado chamado “portador de necessidades educativas especiais” estivessem inseridas dentro do contexto mais amplo da Educação.
            De fato, historicamente observamos que a Educação Especial não tem se inscrito em todos os fóruns da educação geral, como deveria, nem trazido interlocutores da educação regular para contribuírem em seus espaços. Isto é lamentável, pois o fundamento axiológico da Educação Especial é o da Educação, de modo geral, ou seja, pela compreensão de que o processo educativo de uma pessoa com deficiência sensorial, mental ou física começa pela normalidade, pelo que tem em comum com todas as demais pessoas, não por uma pretensa patologia.
            A escola precisa dar respostas - não diria às “necessidades educativas especiais”, mas aos direitos de todos os seus alunos em participar da construção do conhecimento individual a partir do conhecimento socialmente construído - isto se há o real interesse de que o projeto educativo forme cidadãos. A escola deve estar atenta à demanda do aluno, para isto ela existe, logo, significa ir muito além de simplesmente tornar possível a aproximação física, funcional, instrucional. Se não houver a consideração da necessidade da integração da chamada Educação Especial nos fóruns maiores da Educação geral, como vamos imaginar que será possível uma prática construtiva do conhecimento numa visão sócio-histórica se nem mesmo os educadores conseguem atuar dentro desse referencial teórico? Como vamos enfatizar os desafios do Multiculturalismo se os professores não entendem nem mesmo que os surdos são membros de uma minoria cultural?
            Nossa luta é por uma pedagogia que garanta o êxito, através do respeito aos direitos e às diferenças individuais, e que aponte para o princípio da individualização, mas inserindo cada indivíduo no contexto maior que faz a sua história e possibilitando a esses as condições de compreender o próprio processo de construção sócio-histórica. É preciso desfocar a chamada Educação Especial e passar a dirigir o olhar da “Educação”, para as minorias, para os excluídos, para o aluno específico, para o aluno-indivíduo, seja ele surdo, cego indígena, trabalhador, de rua, etc.
            Contribuir para alterar esta realidade faz parte da luta, mas de uma luta prazerosa, como a de quem sabe que encontrou um motivo que merece ser perseguido. Lembro Carlos Drumond de Andrade quando diz:
“Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade...”

...A ENCANTADORA VOZ DO ECO BRADANDO: VIVE!

            Aqui se insere a dimensão da “vida”, pois educação de surdos, para mim é questão de vida, mas não de vida íntima, solitária, ou mesmo familiar, é à vida coletiva a que me reporto aqui. Nesse caminho de vida contemplo, inclusive, os que se juntarão a nós e que ainda estão sem ver (para não dizer: sem ouvir) o que já vislumbramos, os que na sua boa intenção e desejo de fazerem o que sabem como sabem, cometem erros. De fato este é o tempo não de arranjarmos “inimigos teóricos”, mas de “deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. Se trata de ir ao encontro. Os que virão serão povo, e saber serão lutando” - nas palavras do brilhante Thiago de Mello.
            Na dimensão da “vida” o que mais fiz foi “ir e vir”. Mudei muito, caminhei por este Brasil, sempre à procura de melhores condições para a família (razão declarada), mas, também pela razão de querer o melhor para minha filha diferente (razão menos admitida). Fui do Amazonas para o Rio de Janeiro (transferida para a Universidade Federal Fluminense) fazer o Mestrado em Educação Especial na UERJ (apenas nesta Universidade se discutia declaradamente a Educação Especial, na época, em nível de Mestrado); estando na UFF, solicitei afastamento (o primeiro) e fui cursar o Doutorado no Rio Grande do Sul (UFRGS), voltei para o Amazonas a fim de pesquisar a educação de surdos naquele estado que tanto amo; vim para São Paulo, como a maioria dos que aqui aportam: atrás de um emprego para o meu marido. Mas, não posso dizer: “finalmente aqui cheguei”. São Paulo se mostrou inóspita e estamos em face de uma nova e, quiçá, definitiva mudança: o nordeste nos aguarda – lá nos está sendo oferecida porta honrada de trabalho e amizade.
          Nas lembranças da “vida”, destaco fatos importantes que não podem fugir da memória: A) Publiquei quatro livros que me renderam diversas oportunidades de falar da educação de surdos em diversas partes do Brasil. Constatei a importância do texto acadêmico e a influência que uma publicação pode ter no pensamento das pessoas que militam na área aludida. Encantei-me com este poderoso instrumento e estou trabalhando na criação de dois novos livros. B) Tive a honra de ter sido Vice-Diretora da Faculdade de Educação da UFAM, o que me serviu de enorme oportunidade para entender o contexto geral da Universidade, considerando que, nesta função, fui levada a freqüentar fóruns ainda não percorridos. C) Fui convidada pela Secretária de Estado de Educação, Professora Rosane Marques Crespo Costa, para dirigir o Departamento de Políticas e Programas Educacionais da SEDUC/AM. Esta experiência foi um prêmio na minha carreira, pois pude vivenciar o contexto geral da Educação e suas instâncias decisórias: vivi o desejo de fazer muito, com a tristeza de ter tão poucas condições; vivi a contradição de “estar no poder”, sem ter poder de fazer o que acreditava. Vivi a decepção de ver trocado um trabalho técnico e eficiente por um conchavo político. Vi o desmoronar de muitos sonhos e a certeza de saber que “boa intenção” é muito pouco. Tive a chance de fazer muito, até porque “muito” estava em minhas mãos (Educação Especial, Educação Indígena, Educação Fundamental, Ensino Médio, Educação Profissional, Educação Tecnológica), mas tive o susto de ver a oportunidade ser retirada da equipe, quando apenas havíamos “arrumado a casa e juntado recursos”.
         Outro motivo não confessado: vir para São Paulo por estar carregada de decepção.
          A UNIFESP me acolheu. Área da Saúde: mundo novo. Novos olhares sobre a surdez e os surdos no curso de Fonoaudiologia. Olhar individual, olhar sobre o surdo único. E meu olhar para o contexto geral, para as políticas públicas? Fiquei meio aturdida. Mas, encontrei espaço: discutir a surdez e a abordagem bilíngüe; trazer o ensino da Língua de Sinais para os fonoaudiólogos em formação. Plantei sementes. Fiz amigos. Discuti a cultura surda. Fui ouvida...
          Mas... é a área da Educação que balança meu coração! São as discussões desta área que podem influenciar mudanças mais rápidas. É nesta área que está a solução para a minoria surda, para as minorias lingüísticas e culturais como um todo. Quem me dera voltar...
          Introduzi meu último livro[3] dizendo assim:
“Há uma luta pela prevalência sobre os poderes e os saberes que operam nas sociedades humanas. O palco desta luta é a sociedade como um todo. O pano de fundo é a opressão social e cultural, manifestada nas bem palpáveis, reais e precárias condições de vida impostas à “maioria” e às “minorias”. Por trás do panos, e, às vezes, em tela, assistimos a uma trama quase ofensiva onde se destacam: as injustiças sociais, raciais e econômicas; o hedonismo racionalizado; a decadência ética; os preconceitos banalizados; a corrupção remunerada; a criminalidade, a fome, a miséria; as pessoas sem-escola, sem-saúde, sem-trabalho, sem-teto, sem-tudo. Na dimensão econômica se apresenta uma ampliação cada vez mais abissal da pobreza; na dimensão cultural, são expostas tentativas palpáveis, ou mesmo difusas, de assujeitamento dos diferentes; na dimensão individual é mostrado um alargamento do egoísmo e da solidão.
          Paradoxalmente, este é um tempo de imensas possibilidades. (...) Mas, nunca o confronto foi tão possível, tão difuso e, ao mesmo tempo, tão palpável. Nunca se viveu tão acompanhado e tão só.
          Neste contexto, aparecem os surdos, pessoas colocadas às margens do mundo econômico, social, cultural, educacional e político; pessoas narradas como deficientes e incapazes, desapropriadas de seus direitos e da possibilidade de escolhas. A situação a que estão submetidos os surdos, suas comunidades e suas organizações, no Brasil e no mundo, têm muita história de opressão para contar. Focos de atenção são colocados em “sua deficiência auditiva", mas não nas práticas discursivas e condições sociais que os tentam definir e controlar. A insistência nessa incompreensão e o enorme desconhecimento das questões que perpassam a eles e a nós (ouvintes), demanda uma luta para “tirá-los do âmbito das perspectivas médicas, terapêuticas, assistencialistas, caritativas, etc., que, historicamente, têm predominado, para tratá-los como uma questão cultural, social, histórica, política" (Silva, 1997, p. 4)[4].
          Este é o meu discurso, este é o meu lugar próximo – aquele que fala de experiências profissionais, mas também de experiências cotidianas através da vivência com minha filha surda. Isto não me autoriza a falar como surda, nem como portadora de deficiência sensorial, nem mesmo em nome deste ou daquele grupo, mas me faz envolvida de muitas diferentes maneiras nas questões da chamada Educação Especial. A voz da mãe certamente não é uma voz privilegiada num trabalho acadêmico, mas certamente é uma voz que não precisa estar ausente (principalmente num Memorial). Entendo que os estudos sobre a surdez e as deficiências podem ajudar os que ouvem, andam, falam, a compreender mais a respeito de como se dá a construção de suas próprias subjetividades e quais as estruturas de poder culturalmente envolvidas no entorno da questão.
            É caminhando por aí que lembro de Carlos Drumond de Andrade, no seu poema “Reflexão e Ação”, quando diz:, “Hoje/ é dia para você tomar seu próprio mundo na mão. Para aceitá-lo em atitude dinâmica, / para senti-lo concretamente em suas mãos. / Para sonhá-lo de olhos abertos para a realidade, / para contemplá-lo além das aparências, / para penetrá-lo, não para o escravisar, mas para libertá-lo, / para senti-lo como amigo. / É hora, / não para descansar sobre ele, / mas para trabalhar nele”. É exatamente assim que me sinto diante da possibilidade de uma nova etapa não apenas de trabalho, mas de vida - com uma grande vontade de mudar, de trabalhar, de agir, de contribuir em atitude dinâmica para a transformação da realidade que é só abrir os olhos e ver... mas sonhando e contemplando as possibilidades além das aparências. Possibilidades para mim, possibilidades para os meus, possibilidades para o Outro.
            Continuarei na luta, dando tudo da alma, como uma pessoa que pensa, para alterar para melhor a realidade de quem vive.
Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando por inteiro.”
Thiago de Mello







[1] RANAURO, Hilma. Um murro no espelho baço. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.


[2] Trecho da carta recebida em 15 de agosto de 1950: “Espero que esta cartinha chegue a tempo de tirar-lhe da beira do grande precipício em que você se acha para, com o auxílio de nossa boa Mãezinha do Céu... retornar ao bom caminho, que nos leva a verdadeira vida. Creio que você está me compreendendo e não se fará de desentendido diante da sua ex-mestra que tanto se empenha para a salvação da sua alma.

As minhas perguntas sôbre o seu estado de vida sempre tiveram respostas que muito me alegraram. Mas ùltimamente fiquei apreensiva sabendo que você, talvez por influência, quer deixar a nossa santa religião e passar para uma - seita fundada por um herege - Lutero”.

[3] SÁ, Nídia. Cultura, poder e educação de surdos. Manaus, Editora da UFAM, 2002.


[4] SILVA, Tomaz Tadeu. A política e a epistemologia do corpo normalizado. In: Revista Espaço, Rio de Janeiro, n. 8, 1997.