A educação de surdos demanda
projetos políticos que subvertam a ordem da dominação e da subjugação às quais
os surdos historicamente têm sido submetidos. Mas, não se trata de traçar
projetos para eles, ou de
entregar-lhes projetos de “libertação”. Trata-se de ressaltar o direito que os
surdos têm a projetos políticos segundo os seus interesses, bem como de
destacar a potencialidade dos surdos em participar da construção destes
projetos. No entanto, creio que, na construção de um projeto
político-educacional, alguns aspectos não podem estar ausentes, e, cada um
deles significa o início de uma nova e diferente “política”:
a) Abandono da ideologia terapêutica e aproximação a novos
paradigmas sócio-culturais - Desejáveis
mudanças têm de começar pelo total abandono da ideologia clínica, ainda
dominante. Em termos práticos, os educadores e líderes comunitários, tanto
surdos como ouvintes, têm que urgentemente organizar projetos políticos de
cidadania, que ressaltem os direitos lingüísticos, culturais e comunitários dos
surdos. É preciso que sejam feitas reorganizações de projetos pedagógicos, mas,
lembrando que a dificuldade não está no quanto os novos projetos se distanciam
dos modelos clínicos, mas no quanto se aproximam dos novos olhares culturais e
políticos que consideram a diferença (Carlos Skliar,1999).
b) Problematização
da diferença - Há uma luta em torno dos
sentidos atribuídos através das palavras “diversidade” e “diferença”. Na
restrita perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser
naturalizadas, recomendando-se apenas respeito e tolerância; na perspectiva da
diferença, pelo contrário, enfoca-se a produção da identidade e da diferença. A
ênfase tem que estar nas as implicações políticas dos conceitos. Tomaz Silva
ressalta que não podemos “abordar o multiculturalismo em educação
simplesmente como uma questão de tolerância e respeito para com a diversidade
cultural. Por mais edificantes e desejáveis que possam parecer, esses nobres
sentimentos impedem que vejamos a identidade
e a diferença como processos de produção
social, como processos que envolvem relações de poder”
(2000, p. 96). Identidade e diferença têm tudo a ver com as produções e
atribuições de sentido e com as disputas em torno destas. Isto não quer dizer que a diferença é para ser celebrada,
enaltecida; na perspectiva da diferença a própria diferença é problematizada
(Silva, 2000, p. 74).
Weeks
faz um interessante comentário sobre a questão, quando ressalta que nossas
diferenças são/estão entrelaçadas, que não vivemos em espaços inteiramente
separados. Diz que o “ser” é também um pouco de “tornar-se”, mas que isto não
significa negar que a identidade tenha um passado, significa reconhecer que, ao
reivindicá-la, nós a reconstruímos, e sempre a reconstruímos a partir de um
“nós”, com contribuições e avaliações dos outros. Na reconstrução de nossas
identidades, novos sujeitos, outrora silenciados, podem se expressar. Conclui
dizendo que nossa luta não é entre, ou contra, sujeitos naturais [perfeitos,
ouvintes], é uma luta em favor da possibilidade de expressão da identidade e
dos valores políticos que possam validar a diferença e a solidariedade (1994,
apud Woodward, 2000, p. 37).
Assim, é urgente mudar o foco de
definição da surdez e dos surdos: estes não têm que ser encarados como membros
deficitários da comunidade ouvinte; os surdos são membros de uma comunidade
minoritária, com sua própria língua, cultura e convenções sociais. Portanto, há
que se criar escolas onde a diferença tenha um espaço de expressão, escolas em
que as pessoas tenham o direito de serem diferentes.
c)
Criação de escola específica –
A escola é um espaço privilegiado de política cultural, por isto um projeto
político pode começar pela escola, ou nela. Os surdos têm o direito de se
desenvolver numa comunidade de pares, constituindo estratégias de identificação
num processo sócio-histórico autêntico, livre, não cerceado; ora, isto só é
possível (talvez não unicamente, mas primordialmente) numa escola que reflita
sua condição sócio-lingüística e cultural. A questão
central, então, não é em que espaço os surdos estão sendo educados, mas, quais
são as reais oportunidades de aprendizado.
Não se há de forçar a
entrada num tipo de escola
completamente distante de suas características lingüísticas, culturais e
identitárias, mas, se deve possibilitar que os surdos sejam considerados
sujeitos políticos, capazes de discutir os alcances de sua inclusão nas políticas
públicas. É claro que as narrações sobre a surdez e sobre os surdos são
colocadas nas políticas e nas práticas pedagógicas, no entanto, as análises e
as mudanças não devem ficar restritas aos espaços escolares: têm que ser
projetadas, lançadas também para fora dos espaços pedagógicos.
d) Viabilização de ambiente lingüístico adequado – As questões primordiais aqui são: a discussão sobre o
poder lingüístico que os professores ouvintes têm exercido na educação de
surdos e a questão do direito que as pessoas surdas têm de serem participantes
do processo educativo na sua língua. Assim, o exercício do poder lingüístico
dos ouvintes atenta contra os direitos dos surdos, contra as suas
potencialidades e contra sua história. No contexto social em que vivemos o
desejável deve ser uma educação bilíngüe.
Uma educação bilíngüe acontece caso sejam instrumentalizados
ambientes lingüísticos que integrem crianças surdas e adultos surdos
proficientes na língua de sinais, visando a que a língua de sinais seja
adquirida como primeira língua. No entanto, como diz Regina de Souza,
possibilitar a vivacidade de uma língua “é muito mais do que expor a criança a
dados lingüísticos; muito além disto, é um processo de reorganização constante
e dinâmica do ‘eu’ e do ‘outro’”. Comenta
que não se trata de converter a língua de sinais (e o português) em um conjunto
de orações e regras gramaticais, reduzindo-as a apenas isso; ou postulando que
sua aquisição se reduz à presença de um usuário surdo fluente em sinais – cujo
papel seria o de oferecer dados lingüísticos a alunos surdos. Trata-se do
processo de se (re)construir sujeito e relacionar-se dinamicamente com outros,
num movimento dialético. Propõe que o surdo tenha um lugar no discurso, e que
possa se inscrever no simbólico pela língua de sinais, o que lhe permite,
devido à dialética que possibilita, simbolizar a si próprio, ao mundo e ao
outro (1998, p. 64, 65). Somente desta forma é possível garantir o suporte
lingüístico para que o cérebro realize o desenvolvimento cognitivo: proporcionando
o domínio de uma língua natural de modo integral e no menor período de tempo
possível (Fernandez, 2000, p. 50). Ora, a língua de sinais é um processo e, ao
mesmo tempo, um produto construído histórica e socialmente pelas comunidades
surdas, não um escape ridículo para a deficiência auditiva.
d) Cultivo de
relações culturais com a comunidade surda - Os educadores ouvintes precisam reconhecer os efeitos nefastos
das relações de poder que historicamente determinaram que a educação de surdos
fosse orquestrada exclusivamente por ouvintes. Para a instrumentação plena de
uma educação bilíngüe e multicultural é necessário que os educadores surdos
assumam as posições, pois, “uma língua implica sempre uma cultura dentro da
qual – e só dentro da qual – pode adquirir sentidos coletivamente aceitos e
concluídos” (Behares, 2000?, p. 16).
A presença de professores surdos nos projetos pedagógicos é
altamente desejável, pois permite construir uma prática educativa idêntica à
que as crianças ouvintes constroem com seu professores ouvintes. É
imprescindível que seja viabilizada a formação de educadores surdos. Não apenas
a presença de professores surdos é imprescindível, mas o inter-relacionamento
com modelos surdos da cultura. Esta aproximação permite que o aluno surdo
desenvolva suas potencialidades e faça suas escolhas dentro da cultura surda,
assumindo “confortavelmente” sua(s) identidade(s) cultural(ais).
Certamente a aproximação à cultura da comunidade ouvinte
majoritária será possível através da cultura surda, pois é a cultura surda que
baseia a constituição da subjetividade do surdo. Com sua subjetividade pujante,
viva, o surdo pode plenamente acessar os bens culturais majoritários, tanto os
regionais como os universais. Ora, o surdo tem que compreender a si mesmo
coletivamente, inscrito na sociedade maior, mas esta leitura deve se dar
através de sua cultura.
Os surdos têm que ser chamados a esta discussão. Ora, a
melhor condição para definir enfoques e parâmetros para a educação de surdos,
é, inequivocamente, o ser surdo, tal como quem melhor pode questionar a
educação indígena, é o próprio índio, ou, quem melhor pode avaliar a educação
para imigrantes são os próprios, no entanto, estes grupos nem sempre são
chamados ao debate que antecede a criação de políticas públicas. Urge que os
próprios surdos narrem a história do que significa ser surdo e de como entendem
que deve ser um projeto pedagógico adequado a sua especificidade.
e) Currículo pensado
a partir da cultura - O que tem acontecido na tradicional educação de
surdos é a utilização de “sub-currículos”, ou “infra-currículos”. Carlos Skliar
falou de currículos ordinariamente aplicados à educação de surdos: currículo
para deficientes mentais, currículo para ouvintes dividido por dois ou três,
currículo para deficientes da linguagem, currículo para a beneficência laboral,
currículo salva-vidas (1997, p. 258-259). Enfim, currículos que também
denunciam representações sobre a surdez e sobre os surdos.
Para alterar o quadro que aí está, há que se criar uma escola
na qual os currículos sejam construídos a partir da cultura, resgatando
realidades culturais reais; por outro lado, falo de uma escola na qual os
conteúdos curriculares considerados essenciais para a sociedade letrada sejam
os mesmos. É imprescindível que as escolas de surdos sejam encarregadas de
construir o seu currículo estabelecendo uma ponte sólida entre a cultura da
criança surda e a cultura escolar – esta capaz de evitar que o surdo no futuro
seja um adulto desadaptado da sociedade letrada/ouvinte. No entanto, não
significa uma escola que se contenta com o pouco, mas, na qual haja uma luta
contra a desigualdade no conhecimento.
Penso numa escola onde haja uma atitude positiva em relação à
cultura surda por parte dos professores. Uma escola na qual já não se vê a
surdez como um corpo estranho, ou a língua de sinais como uma mímica que
apavora, que ridiculariza, que denuncia o defeito, mas, se encara o surdo como
um cidadão normal, comum. Uma escola que entende a surdez enquanto uma
experiência visual, não como uma parte que falta ou como uma deficiência. Uma
escola que se utiliza de canais de absorção alternativos, que neles investe com
eficiência e competência técnica. Uma escola na qual o currículo seja
apresentado ao surdo através da língua de sinais, no mesmo período e em prazos
idênticos aos da educação de ouvintes e, com a língua escrita trabalhada
semelhantemente à maneira como se ensina uma segunda língua.
f) Educação para a
vida na sociedade do conhecimento - Entendo que a educação de surdos
não tem que ser pensada a partir das exigências que estão “na moda”. O processo
deve ser em direção à compreensão das estratégias que visam o alcance e a
crítica dos saberes, para a vida na sociedade do conhecimento, para o
relacionamento com o outro e com o mundo. Infelizmente “educar para o mercado
de trabalho” (que se diga: em posições inferiores) tem sido a solução proposta.
Oferecer oportunidades de educação para a “sobrevivência no mundo dos ouvintes”
tem sido a escolha. Mas, não se considera que os surdos, por não terem qualquer
comprometimento intelectual gerado pela surdez, podem ser pessoas comuns,
freqüentando os bancos das universidades e tendo expectativas de ascensão
social e econômica como qualquer pessoa.
CONCLUSÃO
Tentar esboçar itens desejáveis
a um projeto político-educacional não garante a existência de um novo olhar.
Junto ao projeto educacional são necessários: políticas de cidadania, políticas
culturais, políticas de identidades (ligadas às questões de etnia, gênero,
etc.), dos direitos lingüísticos, de organização comunitária, dentre outras.
Mesmo assim se haverá de perceber a necessidade de transformações das
representações que configuram os poderes e os saberes ainda enraizados no
modelo terapêutico de atendimento à deficiência e no modelo da tentativa de
centramento na “normalidade”, ou seja, na negação da diferença. A luta pela
consideração das características culturais e lingüísticas dos surdos e de suas
potencialidades são, segundo Carlos Skliar, as sementes para um projeto político
e educacional. (1998, p. 25).
A escola é um território onde formas heterogêneas de
interpretação se enfrentam, mas, nestes embates está sendo construído um novo
marco teórico na educação dos surdos, e, certamente, a partir desta luta, será
possível viabilizar uma escola de surdos “possível”, bilíngüe, multicultural.
As transformações do cotidiano e da arquitetura funcional das escolas e das
comunidades, certamente virão como decorrência destas novas visões. Isto é
muito mais amplo que abordar questões de metodologias de ensino, pois estas
surgem e se efetivam tendo, por trás, conceitos. É ao nível dos conceitos, das
interpretações, das significações, que este texto pretende colaborar,
provocando ressignificações e novas interpretações sobre a surdez e os surdos,
ressignificações que ultrapassem a mera retórica e o acercamento de discursos
que estão na moda, mas que, no fundo, dão apenas a impressão de estarem a favor
das minorias.
O que gerou o fracasso/exclusão educacional de surdos, por
tanto tempo, não foi a incapacidade de ouvirem, foram as representações sociais
sobre a surdez e sobre os surdos, foi a desconsideração para com seus direitos
lingüísticos e culturais, foi o embasamento em teorias de aprendizagem que não
refletiam as condições cognitivas dos surdos nem refletiam como deveria ser a
participação dos professores ouvintes e das comunidades surdas no processo
educativo (Skliar, 1998, p. 18). No
entanto, estes repertórios hegemônicos e equivocados podem ser reinterpretados
se entrarem em contato com outras versões, com outras maneiras de ver. Quando
temos acesso a versões variadas abrimos a possibilidade de desfamiliarização
dos sentidos estabelecidos ou os cristalizamos cada vez mais em nós mesmos.
Não há que se esperar ter todas as condições ideais
para se começar a implementar propostas inovadoras. Há que se começar
de onde se está, com o que se tem, buscando parcerias com a comunidade surda,
discutindo a questão com as comunidades e as famílias, investindo na formação
de educadores surdos, permitindo que as propostas vão se amoldando na medida em
que caminham. Certamente as condições particulares das escolas e das
comunidades surdas determinarão diferenças de instrumentalização de diferentes
propostas, mas variados caminhos poderão levar ao alvo de construir um projeto
educativo conjunto, no qual os traços sócio-lingüístico-culturais dos surdos
formarão o eixo principal.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Espaço, Rio de Janeiro, n. 13,
2000. p. 48-51SILVA,Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. (Org.)
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SOUZA, Regina Maria. Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo. In: Cadernos CEDES. São Paulo, n. 46, 1998. p. 57-67.
WOODWARD, Kathryn, Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro, Vozes, 2000. p. 7-72.
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