terça-feira, 27 de dezembro de 2011

CONTRIBUIÇÕES PARA UM PROJETO PEDAGÓGICO PARA A EDUCAÇÃO DE SURDOS





A educação de surdos demanda projetos políticos que subvertam a ordem da dominação e da subjugação às quais os surdos historicamente têm sido submetidos. Mas, não se trata de traçar projetos para eles, ou de entregar-lhes projetos de “libertação”. Trata-se de ressaltar o direito que os surdos têm a projetos políticos segundo os seus interesses, bem como de destacar a potencialidade dos surdos em participar da construção destes projetos. No entanto, creio que, na construção de um projeto político-educacional, alguns aspectos não podem estar ausentes, e, cada um deles significa o início de uma nova e diferente “política”:






a) Abandono da ideologia terapêutica e aproximação a novos paradigmas sócio-culturais - Desejáveis mudanças têm de começar pelo total abandono da ideologia clínica, ainda dominante. Em termos práticos, os educadores e líderes comunitários, tanto surdos como ouvintes, têm que urgentemente organizar projetos políticos de cidadania, que ressaltem os direitos lingüísticos, culturais e comunitários dos surdos. É preciso que sejam feitas reorganizações de projetos pedagógicos, mas, lembrando que a dificuldade não está no quanto os novos projetos se distanciam dos modelos clínicos, mas no quanto se aproximam dos novos olhares culturais e políticos que consideram a diferença (Carlos Skliar,1999).

b) Problematização da diferença - Há uma luta em torno dos sentidos atribuídos através das palavras “diversidade” e “diferença”. Na restrita perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, recomendando-se apenas respeito e tolerância; na perspectiva da diferença, pelo contrário, enfoca-se a produção da identidade e da diferença. A ênfase tem que estar nas as implicações políticas dos conceitos. Tomaz Silva ressalta que não podemos “abordar o multiculturalismo em educação simplesmente como uma questão de tolerância e respeito para com a diversidade cultural. Por mais edificantes e desejáveis que possam parecer, esses nobres sentimentos impedem que vejamos a identidade  e a diferença como processos de produção social, como processos que envolvem relações de poder” (2000, p. 96). Identidade e diferença têm tudo a ver com as produções e atribuições de sentido e com as disputas em torno destas. Isto não quer dizer que a diferença é para ser celebrada, enaltecida; na perspectiva da diferença a própria diferença é problematizada (Silva, 2000, p. 74).

Weeks faz um interessante comentário sobre a questão, quando ressalta que nossas diferenças são/estão entrelaçadas, que não vivemos em espaços inteiramente separados. Diz que o “ser” é também um pouco de “tornar-se”, mas que isto não significa negar que a identidade tenha um passado, significa reconhecer que, ao reivindicá-la, nós a reconstruímos, e sempre a reconstruímos a partir de um “nós”, com contribuições e avaliações dos outros. Na reconstrução de nossas identidades, novos sujeitos, outrora silenciados, podem se expressar. Conclui dizendo que nossa luta não é entre, ou contra, sujeitos naturais [perfeitos, ouvintes], é uma luta em favor da possibilidade de expressão da identidade e dos valores políticos que possam validar a diferença e a solidariedade (1994, apud Woodward, 2000, p. 37).

Assim, é urgente mudar o foco de definição da surdez e dos surdos: estes não têm que ser encarados como membros deficitários da comunidade ouvinte; os surdos são membros de uma comunidade minoritária, com sua própria língua, cultura e convenções sociais. Portanto, há que se criar escolas onde a diferença tenha um espaço de expressão, escolas em que as pessoas tenham o direito de serem diferentes.

c) Criação de escola específica – A escola é um espaço privilegiado de política cultural, por isto um projeto político pode começar pela escola, ou nela. Os surdos têm o direito de se desenvolver numa comunidade de pares, constituindo estratégias de identificação num processo sócio-histórico autêntico, livre, não cerceado; ora, isto só é possível (talvez não unicamente, mas primordialmente) numa escola que reflita sua condição sócio-lingüística e cultural. A questão central, então, não é em que espaço os surdos estão sendo educados, mas, quais são as reais oportunidades de aprendizado.

Não se há de forçar a entrada num tipo de escola completamente distante de suas características lingüísticas, culturais e identitárias, mas, se deve possibilitar que os surdos sejam considerados sujeitos políticos, capazes de discutir os alcances de sua inclusão nas políticas públicas. É claro que as narrações sobre a surdez e sobre os surdos são colocadas nas políticas e nas práticas pedagógicas, no entanto, as análises e as mudanças não devem ficar restritas aos espaços escolares: têm que ser projetadas, lançadas também para fora dos espaços pedagógicos.

d) Viabilização de ambiente lingüístico adequado As questões primordiais aqui são: a discussão sobre o poder lingüístico que os professores ouvintes têm exercido na educação de surdos e a questão do direito que as pessoas surdas têm de serem participantes do processo educativo na sua língua. Assim, o exercício do poder lingüístico dos ouvintes atenta contra os direitos dos surdos, contra as suas potencialidades e contra sua história. No contexto social em que vivemos o desejável deve ser uma educação bilíngüe.

Uma educação bilíngüe acontece caso sejam instrumentalizados ambientes lingüísticos que integrem crianças surdas e adultos surdos proficientes na língua de sinais, visando a que a língua de sinais seja adquirida como primeira língua. No entanto, como diz Regina de Souza, possibilitar a vivacidade de uma língua “é muito mais do que expor a criança a dados lingüísticos; muito além disto, é um processo de reorganização constante e dinâmica do ‘eu’ e do ‘outro’”.  Comenta que não se trata de converter a língua de sinais (e o português) em um conjunto de orações e regras gramaticais, reduzindo-as a apenas isso; ou postulando que sua aquisição se reduz à presença de um usuário surdo fluente em sinais – cujo papel seria o de oferecer dados lingüísticos a alunos surdos. Trata-se do processo de se (re)construir sujeito e relacionar-se dinamicamente com outros, num movimento dialético. Propõe que o surdo tenha um lugar no discurso, e que possa se inscrever no simbólico pela língua de sinais, o que lhe permite, devido à dialética que possibilita, simbolizar a si próprio, ao mundo e ao outro (1998, p. 64, 65). Somente desta forma é possível garantir o suporte lingüístico para que o cérebro realize o desenvolvimento cognitivo: proporcionando o domínio de uma língua natural de modo integral e no menor período de tempo possível (Fernandez, 2000, p. 50). Ora, a língua de sinais é um processo e, ao mesmo tempo, um produto construído histórica e socialmente pelas comunidades surdas, não um escape ridículo para a deficiência auditiva.

d) Cultivo de relações culturais com a comunidade surda - Os educadores ouvintes precisam reconhecer os efeitos nefastos das relações de poder que historicamente determinaram que a educação de surdos fosse orquestrada exclusivamente por ouvintes. Para a instrumentação plena de uma educação bilíngüe e multicultural é necessário que os educadores surdos assumam as posições, pois, “uma língua implica sempre uma cultura dentro da qual – e só dentro da qual – pode adquirir sentidos coletivamente aceitos e concluídos” (Behares, 2000?, p. 16).

A presença de professores surdos nos projetos pedagógicos é altamente desejável, pois permite construir uma prática educativa idêntica à que as crianças ouvintes constroem com seu professores ouvintes. É imprescindível que seja viabilizada a formação de educadores surdos. Não apenas a presença de professores surdos é imprescindível, mas o inter-relacionamento com modelos surdos da cultura. Esta aproximação permite que o aluno surdo desenvolva suas potencialidades e faça suas escolhas dentro da cultura surda, assumindo “confortavelmente” sua(s) identidade(s) cultural(ais).

Certamente a aproximação à cultura da comunidade ouvinte majoritária será possível através da cultura surda, pois é a cultura surda que baseia a constituição da subjetividade do surdo. Com sua subjetividade pujante, viva, o surdo pode plenamente acessar os bens culturais majoritários, tanto os regionais como os universais. Ora, o surdo tem que compreender a si mesmo coletivamente, inscrito na sociedade maior, mas esta leitura deve se dar através de sua cultura.

Os surdos têm que ser chamados a esta discussão. Ora, a melhor condição para definir enfoques e parâmetros para a educação de surdos, é, inequivocamente, o ser surdo, tal como quem melhor pode questionar a educação indígena, é o próprio índio, ou, quem melhor pode avaliar a educação para imigrantes são os próprios, no entanto, estes grupos nem sempre são chamados ao debate que antecede a criação de políticas públicas. Urge que os próprios surdos narrem a história do que significa ser surdo e de como entendem que deve ser um projeto pedagógico adequado a sua especificidade.

e) Currículo pensado a partir da cultura - O que tem acontecido na tradicional educação de surdos é a utilização de “sub-currículos”, ou “infra-currículos”. Carlos Skliar falou de currículos ordinariamente aplicados à educação de surdos: currículo para deficientes mentais, currículo para ouvintes dividido por dois ou três, currículo para deficientes da linguagem, currículo para a beneficência laboral, currículo salva-vidas (1997, p. 258-259). Enfim, currículos que também denunciam representações sobre a surdez e sobre os surdos.

Para alterar o quadro que aí está, há que se criar uma escola na qual os currículos sejam construídos a partir da cultura, resgatando realidades culturais reais; por outro lado, falo de uma escola na qual os conteúdos curriculares considerados essenciais para a sociedade letrada sejam os mesmos. É imprescindível que as escolas de surdos sejam encarregadas de construir o seu currículo estabelecendo uma ponte sólida entre a cultura da criança surda e a cultura escolar – esta capaz de evitar que o surdo no futuro seja um adulto desadaptado da sociedade letrada/ouvinte. No entanto, não significa uma escola que se contenta com o pouco, mas, na qual haja uma luta contra a desigualdade no conhecimento.

Penso numa escola onde haja uma atitude positiva em relação à cultura surda por parte dos professores. Uma escola na qual já não se vê a surdez como um corpo estranho, ou a língua de sinais como uma mímica que apavora, que ridiculariza, que denuncia o defeito, mas, se encara o surdo como um cidadão normal, comum. Uma escola que entende a surdez enquanto uma experiência visual, não como uma parte que falta ou como uma deficiência. Uma escola que se utiliza de canais de absorção alternativos, que neles investe com eficiência e competência técnica. Uma escola na qual o currículo seja apresentado ao surdo através da língua de sinais, no mesmo período e em prazos idênticos aos da educação de ouvintes e, com a língua escrita trabalhada semelhantemente à maneira como se ensina uma segunda língua.

f) Educação para a vida na sociedade do conhecimento - Entendo que a educação de surdos não tem que ser pensada a partir das exigências que estão “na moda”. O processo deve ser em direção à compreensão das estratégias que visam o alcance e a crítica dos saberes, para a vida na sociedade do conhecimento, para o relacionamento com o outro e com o mundo. Infelizmente “educar para o mercado de trabalho” (que se diga: em posições inferiores) tem sido a solução proposta. Oferecer oportunidades de educação para a “sobrevivência no mundo dos ouvintes” tem sido a escolha. Mas, não se considera que os surdos, por não terem qualquer comprometimento intelectual gerado pela surdez, podem ser pessoas comuns, freqüentando os bancos das universidades e tendo expectativas de ascensão social e econômica como qualquer pessoa.

CONCLUSÃO

Tentar esboçar itens desejáveis a um projeto político-educacional não garante a existência de um novo olhar. Junto ao projeto educacional são necessários: políticas de cidadania, políticas culturais, políticas de identidades (ligadas às questões de etnia, gênero, etc.), dos direitos lingüísticos, de organização comunitária, dentre outras. Mesmo assim se haverá de perceber a necessidade de transformações das representações que configuram os poderes e os saberes ainda enraizados no modelo terapêutico de atendimento à deficiência e no modelo da tentativa de centramento na “normalidade”, ou seja, na negação da diferença. A luta pela consideração das características culturais e lingüísticas dos surdos e de suas potencialidades são, segundo Carlos Skliar, as sementes para um projeto político e educacional. (1998, p. 25).

A escola é um território onde formas heterogêneas de interpretação se enfrentam, mas, nestes embates está sendo construído um novo marco teórico na educação dos surdos, e, certamente, a partir desta luta, será possível viabilizar uma escola de surdos “possível”, bilíngüe, multicultural. As transformações do cotidiano e da arquitetura funcional das escolas e das comunidades, certamente virão como decorrência destas novas visões. Isto é muito mais amplo que abordar questões de metodologias de ensino, pois estas surgem e se efetivam tendo, por trás, conceitos. É ao nível dos conceitos, das interpretações, das significações, que este texto pretende colaborar, provocando ressignificações e novas interpretações sobre a surdez e os surdos, ressignificações que ultrapassem a mera retórica e o acercamento de discursos que estão na moda, mas que, no fundo, dão apenas a impressão de estarem a favor das minorias.

O que gerou o fracasso/exclusão educacional de surdos, por tanto tempo, não foi a incapacidade de ouvirem, foram as representações sociais sobre a surdez e sobre os surdos, foi a desconsideração para com seus direitos lingüísticos e culturais, foi o embasamento em teorias de aprendizagem que não refletiam as condições cognitivas dos surdos nem refletiam como deveria ser a participação dos professores ouvintes e das comunidades surdas no processo educativo (Skliar, 1998, p. 18). No entanto, estes repertórios hegemônicos e equivocados podem ser reinterpretados se entrarem em contato com outras versões, com outras maneiras de ver. Quando temos acesso a versões variadas abrimos a possibilidade de desfamiliarização dos sentidos estabelecidos ou os cristalizamos cada vez mais em nós mesmos.

Não há que se esperar ter todas as condições ideais para se começar a implementar propostas inovadoras. Há que se começar de onde se está, com o que se tem, buscando parcerias com a comunidade surda, discutindo a questão com as comunidades e as famílias, investindo na formação de educadores surdos, permitindo que as propostas vão se amoldando na medida em que caminham. Certamente as condições particulares das escolas e das comunidades surdas determinarão diferenças de instrumentalização de diferentes propostas, mas variados caminhos poderão levar ao alvo de construir um projeto educativo conjunto, no qual os traços sócio-lingüístico-culturais dos surdos formarão o eixo principal.
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEHARES, Luis Ernesto. Novas correntes na educação do surdo: dos enfoques clínicos aos culturais. Santa Maria, UFSM, [2000?] (no prelo). p.1-22
FERNANDES, Eulália. Língua de sinais e desenvolvimento cognitivo de crianças surdas. In: Revista Espaço, Rio de Janeiro, n. 13, 2000. p. 48-51
SILVA,Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. (Org.)
Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro, Vozes, 2000a. p. 73-102.
SKLIAR,Carlos. A reestruturação curricular e as políticas educacionais para as diferenças: o caso dos surdos In: SILVA, Luiz Heron et al. (Orgs). Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Porto Alegre, 1997. p. 242 - 281.
____________. Prefácio. In: SÁ, Nídia Limeira, Educação de surdos: a caminho do bilingüismo. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1999. p. 11-19.
______. Um olhar sobre o nosso olhar acerca da surdez e das diferenças. In: ______. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998b. p. 7-32.
SOUZA, Regina Maria. Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo. In: Cadernos CEDES. São Paulo, n. 46, 1998. p. 57-67.
WOODWARD, Kathryn, Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro, Vozes, 2000. p. 7-72.

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