quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

DISCURSO como Paraninfa do Curso Letras/LIBRAS - pólo UFBA



Dezembro de 2010

“Não é sempre que se pode ter o direito de tomar a palavra: há de haver uma qualidade ou categoria que possibilite esse uso”. (De Gimeno, A Nova Retórica, 1986).

Traduzindo melhor: não é qualquer pessoa que pode falar num momento especial, não é qualquer pessoa que pode ter o direito de comunicar algo num momento sublime, este direito de “falar”, ou melhor, de “comunicar algo importante” não é para qualquer pessoa. Este direito só é dado a pessoas muito especiais, que têm alguma “qualidade”, alguma coisa importante, algum acontecimento que lhe deu o direito comunicar algo, como estou fazendo aqui, agora.

Fico imaginando: por que eu tenho o direito de tomar a palavra, de comunicar algo, de estar aqui diante de vocês para proferir um discurso como paraninfa desta primeira turma do curso Letras/Libras?

Será que é por que eu fui a primeira coordenadora deste curso? Acho que não, porque isto qualquer pessoa poderia ser... Penso que ganhei este direito de estar aqui na frente, hoje, porque eu entendi algumas coisas e consegui provar para vocês, formandos, que entendi e me comprometi com coisas importantes.

Convivendo com os surdos, e estudando a educação de surdos, eu entendi que:

a)    Os surdos são pessoas iguais a quaisquer outras, são pessoas normais, com os mesmos problemas, dificuldades, projetos, esperanças, sonhos....

b)    Os surdos são pessoas inteligentes e criativas que lutam para vencer obstáculos da comunicação e que, para isto, criaram uma língua plena, interessante, bonita... com a qual podem expressar todo o seu mundo interior e com a qual podem fazer uso da capacidade humana de comunicar-se inteligivelmente e trocar experiências com o outro humano.

c)     Entendi que a língua de sinais é a língua natural dos surdos, é o artefato mais importante de sua cultura.

d)    Entendi que os surdos são pessoas que apreendem auditivamente o mundo por meio de uma leitura visual do mundo.

e)    Entendi a importância de uma abordagem educacional que considera a identidade, a língua e a cultura surdas como eixo fundamental.

f)      Entendi que os surdos foram “silenciados” por tanto tempo, sofreram até mesmo violência institucional contra sua língua e cultura.

g)    Entendi que os surdos formam um grupo linguístico e cultural minoritário, socialmente excluído que não tem espaço garantido para que seu discurso seja conhecido, divulgado amplamente.



Talvez pelo que entendi tenho o direito de estar aqui, mas, assim, não sou apenas eu que poderia estar proferindo este discurso, mas tantos outros ouvintes: amigos, professores, pesquisadores, intelectuais ou técnicos, que, como eu, entenderam que cabe a nós, profissionais da educação, contribuírem para que existam mais e mais momentos de discussão, onde as visões dos surdos, seus argumentos, suas razões, tenham mais e mais peso e poder.      

          Esta turma do pólo UFBA é uma turma diferenciada, pois, dos nove pólos que foram criados em 2006, foi a única turma, de todo o Brasil, em que havia mais ouvintes que surdos. Foi difícil para nós, ouvintes, no início, entendermos certas coisas que hoje entendemos. Por exemplo, houve um momento em que os surdos reclamaram que nós, ouvintes, usávamos tanto a nossa língua oral na sala de vídeo-aula e no laboratório, que até parecia que aquele não era um curso de LIBRAS. Muitos de nós, ouvintes, reclamamos e dissemos que, o mesmo direito que os alunos surdos tinham de usar a LIBRAS, nós, ouvintes, tínhamos de oralizar. Mas, a Língua de Sinais saiu vencedora, pois só depois aprendemos que estávamos perdendo uma grande oportunidade de transformar o espaço dos encontros dos alunos em um rico ambiente lingüístico cuja existência só beneficiaria aos ouvintes. Aprendemos, portanto, com a convivência, com o respeito ao outro. 

É por isto que a professora Rosa Silveira (no livro Caminhos Investigativos) diz que “as palavras que nós usamos estão sempre marcadas pelo OUTRO” (1996). É verdade... Nós, ouvintes, que convivemos com os surdos na busca pelo conhecimento sobre as Letras e sobre os sinais, fomos marcados uns pelos outros.

A Universidade Federal de Santa Catarina fez história no Brasil, ao acreditar numa equipe de profissionais que se atiraram a fazer o inusitado: criar um curso completamente novo, que não tinha de onde copiar... Um curso que estudaria e língua e a cultura dos outros – estes outros (surdos) outrora ausentes da academia. Não havia no Brasil um curso de graduação que se detivesse a estudar a Língua de Sinais, nem havia tampouco surdos doutores nem mestres. Mas, esta já não é mais a realidade brasileira. Já vários cursos de graduação e de pós-graduação se debruçam sobre a LIBRAS e já diversos outros surdos estão contribuindo como profissionais em Universidades brasileiras. Tudo isto se tornou realidade porque o Brasil começou a conhecer os surdos e a entender melhor que existem as línguas de sinais e as culturas surdas.

Como sabemos, a linguagem humana abre possibilidades para a criação e a transformação da cultura, portanto, a cultura surda, outrora desconhecida, hoje está conseguindo ser divulgada, ampliada e respeitada.

Continuamos num movimento de luta a favor do uso irrestrito da Língua de Sinais, e aqui se formam hoje PROFESSORES, surdos e ouvintes, de LIBRAS.

Professores de Libras têm mais que a missão de ensinar Libras – têm a missão de ensinar a ensinar surdos, a missão de ensinar professores e estudantes, surdos ou ouvintes, a ensinarem surdos verdadeiramente, não como quem faz o pacto da mediocridade: eu finjo que ensino e você finge que aprende – pois foi isto que aconteceu por tanto tempo no Brasil.

Vocês estão agora legitimados socialmente como PROFESSORES DE LIBRAS. Professores de Libras surdos e professores de Libras ouvintes. Certamente os professores de Libras surdos terão uma experiência e os Professores de Libras ouvintes terão outra.

Uma vez agora PROFESSORES DE LIBRAS, penso que vocês precisarão construir uma história, construir a educação de surdos no Brasil e construir sentidos para a disciplina LIBRAS que está nos currículos mas que ainda não está suficientemente definida em seus objetivos pedagógicos. Visitem o futuro nos seus sonhos e decidam viver lá...

Assim, penso que mais que ter o DIREITO de tomar a palavra, tenho o PRAZER, a ALEGRIA de tomar a palavra, de falar algo para vocês

Quero dizer-lhes que não desistam, continuem a estudar, a pesquisar sobre este interessante povo surdo.

 Ouvintes: Continuem a ser parceiros nesta luta para que os surdos tenham seu lugar neste mundo do trabalho.

Surdos: Continuem a nos ensinar sobre vocês, sua língua e sua cultura.

E que Deus os abençoe a todos, pois eu sei que Deus gosta dos surdos, pois, afinal, ele os fez como vocês são: perfeitos surdos!

Profa. Dra. Nídia Limeira de Sá

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